Doze anos depois
Bella Smith retornou a Nashville, Flórida. A curiosidade tinha sido sua companheira de viagem desde o Baton Rouge, e não tinha pensado em muito mais que não fora seu motivo para retornar. Não havia nada na estrada que lhe resultasse familiar, porque quando vivia em Nashville poucas vezes se aventurava além da pequena cidade, de maneira que carecia de lembranças que pudessem surgir para unir o passado com o presente, a menina com a mulher.
Mas quando apareceu o pôster que assinalava os limites de Nashville, quando as casas começaram a ver-se mais juntas entre si formando verdadeiras ruas e vizinhanças, quando os bosques de altos pinheiros e árvores de folha caduca deram passo aos postos de gasolina e as lojas, sentiu uma dolorosa tensão que começava a crescer em seu interior. E se intensificou quando chegou à praça da cidade, com aquela delegacia de tijolos vermelhos que conservava exatamente o mesmo aspecto que ela guardava em sua memória. Os carros seguiam estacionando em bateria ao redor da praça, e os bancos do parque seguiam estando situados um a cada lado para que os anciões se reunissem ali nos calorosos dias do verão, procurando proteção sob a densa sombra dos imensos carvalhos que cresciam na praça.
Naturalmente, certas coisas tinham mudado. Alguns dos edifícios eram novos, enquanto que tinham desaparecido vários dos mais velhos. Colocaram-se canteiros de flores em cada canto da praça, sem dúvida graças à iniciativa do Clube de Senhoras, nos quais cresciam pensamentos que inclinavam suas graciosas caras de cor arroxeado para os viajantes.
Entretanto, em sua maior parte, tudo estava igual e as pequenas diferenças não faziam a não ser ressaltar o familiar. A dor que lhe oprimia o peito aumentou até que quase não pôde respirar, e lhe tremeram as mãos sobre o volante. Invadiu-a uma penetrante sensação de doçura. O lar.
Foi uma sensação tão forte que teve que parar o automóvel e desviar-se a um espaço de estacionamento que viu diante da delegacia. O coração lhe pulsava com violência no peito, e respirou fundo várias vezes para tranqüilizar-se. Não esperava aquilo, não esperava sentir o efeito de umas raízes que acreditava cortadas fazia doze anos. Aquele sentimento a emocionou estimulou-a vivamente. Tinha ido ali levada tão somente pela confusão, pois desejava saber com segurança o que tinha acontecido depois que os Smith foram expulsos à força daquele lugar, mas aquela nova sensação de pertencer ali se sobrepôs à curiosidade.
Entretanto, ela não pertencia a aquele lugar, disse-se. Embora tivesse vivido ali, na realidade nunca tinha pertencido a ele; só tinham tolerado sua presença. Aqueles aromas intensos e coloridos que não se pareciam com os de nenhum outro lugar do mundo, as imagens que tinham ficado impressas em seu cérebro desde que nasceu as sutis influências da latitude e a longitude que reconhecia cada uma das células de seu corpo; tudo isso lhe dizia que aquele era seu lar. Ali tinha nascido e crescido. Suas lembranças de Nashville eram amargas, mas mesmo assim atiravam dela com cordas invisíveis que nem sequer sabia que existissem. Não tinha desejado aquilo; só tinha querido satisfazer sua curiosidade, perceber uma sensação de ter posto fim a tudo isso, para poder abandonar totalmente o passado e construir seu futuro.
Não tinha sido fácil voltar. As palavras de Nick Carter ainda ardiam em sua memória como se as tivesse pronunciado no dia anterior, e não doze anos atrás. Às vezes passava dias sem pensar nele, mas a dor seguia estando no mesmo lugar; controlado, mas perene, como um companheiro constante. O fato de ter retornado transformava as lembranças em um pouco mais imediato, e ouviu em sua mente a voz do Nick que lhe dizia: «É lixo».
Aspirou profundamente, trêmula, e inalou o doce aroma de cor verde tão entrelaçada nas lembranças de sua infância. Já mais calma, examinou a praça tranqüilamente, familiarizando-se de novo com o que em outro tempo tinha conhecido tão bem como a palma de sua mão.
Algumas das antigas lojas que se alinhavam ao longo das calçadas se puseram mais elegantes; a loja de ferragens tinha agora uma fachada de pedra e madeira de cedro e uma dupla porta de estilo rústico. Um Mcdonalds ocupava o espaço do antigo Dairy Dip. Tinham construído um escritório bancário novo, e ela teria apostado algo a que pertencia aos Carter. As pessoas passavam ao seu lado e lhe dirigia olhares de curiosidade igual a que se fazia em toda cidade pequena com os forasteiros, mas ninguém a reconheceu. Não esperava que o fizessem; os doze anos transcorridos a tinham transformado de menina em mulher, e ela mesma tinha deixado de ser uma pessoa necessitada para converter-se em outra capaz, e tinha passado de pobre a próspera. Embainhada em seu traje de jaqueta de cor nata, com a cabeleira ruiva recolhida em um elegante, coque e os olhos protegidos por óculos de sol, não havia nada nela que recordasse a Renée Smith.
Que ironia, disse-se Bella; Renée era culpada sem nenhum gênero de dúvidas da maioria das acusações que lhe faziam, mas era inocente de quão única finalmente fez que jogassem da cidade aos Smith. Não se tinha fugido com o Bob Carter.
Foi à curiosidade por saber exatamente o que tinha feito Bob o que fez que Bella voltasse para Nashville ao cabo de tantos anos. Havia-se encaprichado de uma nova namorada e se apresentou um dia mais tarde ou assim, surpreso pelo revôo que tinha causado? Tinha estado de farra, bebendo, ou possivelmente em uma maratona de pôquer? Bella queria sabê-lo; queria ver-se cara a cara com ele, olhá-lo nos olhos e lhe dizer o que havia feito a ela sua irresponsabilidade.
Contemplou com olhar fixo a praça, sem vê-la, sumida em suas lembranças. Sua família se desfez atrás daquela fatídica noite. Tinham chegado até o Baton Rouge antes de deter-se pernoitar, e tinham dormido em seus veículos: Amos só na caminhonete, Russ e James na sua, e Jodie em seu desmantelado carro. Bella e Scottie passaram a noite com Jodie, Scottie dormindo no colo de Bella.
Ao olhar atrás, a maior parte do que recordava era terror e vergonha. Algumas de suas lembranças permaneciam congeladas, claros como o cristal: as luzes cegadoras dos faróis dos carros patrulha, aquele momento de profundo terror no que a tiraram da cama a rastros, empurraram-na pela porta e a jogaram no chão, os gritos do Scottie. Às vezes inclusive lhe parecia sentir as mãozinhas do menino agarrando-a, a pressão terrível de seu corpinho contra suas pernas. Entretanto, a lembrança mais nítida de todos, que persistia em sua mente com dolorosa claridade, era o do Nick olhando-a com aquele desprezo paralisante.
Recordava o desespero com que tentou reunir seus míseros pertences. Recordava o longo caminho de carro através da escuridão; não tinha sido tão longo, mas lhe pareceu que não tinha fim, cada segundo se estirava de tal maneira que um minuto demorava horas
Pouco depois de amanhecer, um policial os jogou do parque onde se detiveram, e a triste comitiva se pôs de novo
Uma semana depois, despertaram uma manhã e descobriram que Amos se foi, igual a que se tinha ido Renée, embora ele pelo menos levasse sua roupa. James e Russ superaram a crise gastando em cerveja o escasso dinheiro que ficava e embebedando-se. Não muito depois, Russ também partiu.
James tentou. Para mérito dele, tentou-o. Só tinha dezoito anos, mas quando se enfrentou de repente com a responsabilidade de cuidar de seus três irmãos pequenos, aceitou todos os trabalhos que pôde, por estranhos que fossem. Jodie colaborou trabalhando em restaurantes de comida rápida, mas inclusive com essa ajuda não foi suficiente. Não transcorreu muito tempo antes de que aparecessem os assistentes sociais, e Jodie, Bella e Scottie foram postos sob a custódia do estado. James fez algum que outro ruído de protesto, mas Bella viu que principalmente se sentia aliviado. Não voltou a vê-lo.
A adoção ficava desconjurado; Jodie e Bella eram muito maiores, e ao Scottie não o queria ninguém. O melhor que cabia esperar era que estivessem os três no mesmo lar de acolhida, onde Bella pudesse cuidar do pequeno. O que conseguiram não foi o melhor, mas a alternativa resultou aceitável, ao menos para Bella. Jodie foi viver em um lar de acolhida, e Bella e Scottie
Jodie não ficou muito tempo em um lar de acolhida, mas sim se mudou duas vezes. Bella se considerou afortunada em seu caso; os Gresham não tinham muito, mas se mostravam dispostos a compartilhar o que tinham com seus filhos adotivos. Pela primeira vez em sua vida, Bella viu como vivia as pessoas respeitáveis, e absorveu aquela situação como uma esponja. Invariavelmente, para ela constituía um prazer voltar do colégio e encontrar uma casa limpa em que flutuavam os aromas do jantar que estava preparando-se. Sua roupa, embora não era cara, era bonita e moderna que podiam permitir aos Greshani com o dinheiro que recebiam para mantê-la. No colégio ninguém a chamava «gentinha». Aprendeu o que era viver em uma casa em que os adultos se amavam e respeitavam entre si, e seu faminto coração se enchia de agradar com aquela maravilha.
Scottie era mimado por todos, e lhe compraram brinquedos novos, embora não demorou muito em começar a decair de forma drástica. Para Bella, a doçura que rodeou ao pequeno durante o pouco tempo que ficava de vida fez que o desse tudo por bem empregado. Houve uma temporada em que o menino foi feliz. O primeiro Natal depois da fuga de Renée o deixou louco de alegria.
Permanecia horas sentado, muito cansado para jogar, mas contente ficando olhando as luzes da árvore de Natal. Morreu em janeiro, docemente enquanto dormia. Bella sabia que se aproximava o momento e começou a passar as noites sentada em uma poltrona, junto a sua cama.
Algo, talvez uma mudança na respiração do menino, a despertou. De modo que tomou a mãozinha gordinha do pequeno na sua própria e a sustentou enquanto suas inalações foram espaçando-se cada vez mais até que por fim, docemente, cessaram de tudo. Seguiu sustentando sua mão até que começou a notar que a pele ia voltando-se mais fria, e só então foi despertar aos Gresham.
Tinha passado quase quatro anos inteiros vivendo com os amáveis Gresham. Jodie terminou a secundária, casou-se imediatamente e partiu atraída pelas brilhantes luzes de Houston. Bella estava completamente sozinha, pois toda sua família verdadeira se foi. Concentrou-se nos estudos e não fez caso algum de todos os meninos que constantemente a incomodavam lhe pedindo para sair. Tinha ficado muito insensível, muito traumatizada pelas convulsões que tinha sofrido na vida para lançar-se a aquele torvelinho social da adolescência. Os Gresham tinham-lhe mostrado os bons e agradáveis que podiam ser a estabilidade e a respeitabilidade, e isso era o que desejava para si mesmo. E para consegui-lo, concentrou todas suas energias em construir algo das cinzas às que tinha ficado reduzida sua vida. Depois de intermináveis horas de estudo, obteve as melhores nota da classe e ganhou uma bolsa para entrar em um pequeno centro universitário. Deixar aos Gresham não resultou nada fácil, mas como o estado já não pagava sua manutenção, tinha que ir-se a outra parte. Aceitou dois empregos de meia jornada para manter-se enquanto estudava, mas a Bella não importava o trabalho duro, pois durante boa parte de sua existência logo não tinha conhecido outra coisa.
Em seu último ano universitário se apaixonou por um estudante de pós-graduação, Kyle Hardy. Saíram durante seis meses e se casaram uma semana depois de graduar-se Bella. Durante um curto período de tempo esteve quase afligida de felicidade, segura de que seus sonhos tinham se feito realidade, depois de tudo. Mas o sonho não durou muito, nem sequer tanto como seu breve matrimônio. Bella se tinha feito a ilusão de estabelecer-se, mobiliar um apartamento encantador e economizar para o futuro, no que se incluíam os filhos, uma casa bonita e dois carros. Mas não funcionou assim. Apesar das responsabilidades de seu novo emprego, ao Kyle seguiu gostando de beber muito e levar a mesma vida despreocupada que levava quando estudante. Uma noite, aquilo se levou o melhor dele quando, depois de sair de um bar para dirigir-se a casa, seu carro saiu de uma ponte. Não houve mais carros implicados no acidente, o qual foi uma bênção. Quando se realizou a autópsia, tirou o chapéu que o grau de álcool de seu sangue era o dobro do permitido pela lei.
Aos vinte e dois anos, Bella se encontrava de novo sozinha. Passou-o mau, mas se empenhou obstinadamente em reconstruir sua vida. Contava com um título universitário em administração de empresas e dinheiro do pequeno seguro de vida que tinha Kyle, além do que ganhava com seu trabalho. Mudou-se a Dallas e conseguiu um emprego em uma agência de viagens pequena. Dois anos depois, a agência era propriedade dela; já tinha aberto uma filial
Tinha alcançado a estabilidade econômica, e era tão maravilhosa como sempre tinha imaginado que seria, mas era consciente do doloroso vazio que havia em sua vida. Necessitava também uma sólida base emocional. Não queria ter um romance com ninguém; os dois homens aos que se atreveu a amar, Nick Carter e Kyle Hardy, tinham-lhe ensinado quão perigoso era. Mas ainda ficava a família em alguma parte, e queria encontrá-la.
Recordou vagamente que sua avó por parte de mãe vivia nos arredores do Shreveport.
Tinha-a visto uma só vez em sua vida, e quando os serviços sociais do Texas tentaram ficar em contato com essa avó, não conseguiram dar com ela. Mas os serviços sociais estavam saturados de trabalho e escassos de pessoal, e tinham abandonado uma busca que era pouco metódica. Bella contava com mais tempo e mais determinação. Começou a fazer chamadas, e graças a Deus não havia tantos Armstead na zona do Shreveport. Por fim contatou com uma pessoa, um sobressaio por parte de seu avô Armstead, que sabia que Jeanette Armstead se foi a viver ao Jackson, Mississipi, faria uns dez ou doze anos, justo depois de que sua filha maior se apresentasse de novo.
Bella ficou atônita. Sua mãe, Renée, era a tal filha maior. Mas Renée fugiu com o Bob Carter. O que tinha acontecido para que voltasse com sua mãe? Seguia Bob estando com ela, ou tinha retornado ao ninho, com sua família? Um grande número de anos se interpunham entre o momento presente e aquela horrível noite
Chamou o serviço de informação, conseguiu o número de telefone de sua avó e chamou. Para surpresa dela, foi Renée quem respondeu ao telefone. Inclusive depois de todos aqueles anos, ainda recordava a voz de sua mãe. Surpreendida e emocionada, identificou-se. A conversação entre ambas foi estranha ao princípio, mas por fim Bella agarrou forças para perguntar ao Renée o que tinha ocorrido com o Bob Carter.
—O que lhe passou? —disse Renée em tom aborrecido. — Jodie me contou essa absurda história de que nós dois tínhamos fugido juntos, mas para mim era nova. Fartei-me de ser o saco de boxe de Amos e de viver na miséria, e Deus sabe que Bob Carter não ia fazer nada a respeito, assim que me parti, fui ao Shreveport e me transladei aqui para viver com minha mãe. Sua tia Wilma vive aqui, no Jackson, de modo que, como um mês depois daquilo, viemos aqui também. Não vi ao Bob Carter.
A Bella custou assimilar tudo de repente, eram muitos os pensamentos que revoavam em sua cabeça. Era evidente que Jodie tinha encontrado a sua mãe, mas nenhuma das duas tinha feito o menor esforço por ficar em contato com ela. Renée podia ter tirado seus dois filhos pequenos do lar de acolhida, mas não teve problema algum em deixá-los ali. Bella se precaveu de que nem sequer tinha perguntado pelo Scottie.
E logo estava o mistério do Bob Carter. Ao melhor não se foi com Renée, mas em efeito partiu, pelo menos temporariamente, e com sua fuga tinha posto em marcha os acontecimentos que tinham conformado a vida de Bella. Intrigada e perplexa, Bella decidiu averiguar com segurança o que tinha acontecido. À idade de quatorze anos tinha sido literalmente jogada no meio da noite igual a uma parte de lixo, e ainda vivia com aquela dor.
Precisava conhecer o final da história; queria fechar a porta a seu passado para poder continuar com o futuro.
De maneira que ali estava, sentada no carro na praça da delegacia de Nashville, sumida nas lembranças e perdendo o tempo. Não deveria ser muito difícil averiguar onde tinha estado Bob Carter durante o que provavelmente foi um só dia, aquele dia crucial que tinha alterado sua vida de forma total.
O primeiro, supôs, era encontrar um lugar onde pernoitar. Tinha chegado ao Baton Rouge de avião aquela manhã, atendeu o negócio que tinha, e depois alugou um carro e veio até Nashville. Já quase tinha anoitecido, e estava cansada. Não lhe levaria muito tempo averiguar o que queria saber, mas não desejava retornar conduzindo até o Baton Rouge se podia tomar uma habitação em um motel de Nashville.
Havia um motel doze anos atrás, mas já então era ligeiramente sórdido e era possível que tivesse desaparecido. Encontrava-se na parte leste da cidade, na estrada que levava ao I—55.
Baixou o vidro do carro e chamou uma mulher que passava pela calçada.
—Desculpe. Há algum motel na cidade?
A mulher se deteve e se aproximou do lado do carro. Teria uns quarenta e tantos anos e lhe resultou vagamente familiar, mas não conseguiu situá-la.
—Sim — respondeu, e se voltou para assinalar. —Vá até a esquina da praça e gire à direita. Está mais ou menos a uns três quilômetros, nessa direção.
Parecia tratar do mesmo motel. Bella sorriu.
—Obrigada.
—De nada. —A mulher sorriu e se despediu com um movimento de cabeça antes de retornar à calçada.
Bella manobrou o pequeno automóvel alugado para entrar no pausado transito. Nashville não estava mais animado agora que doze anos antes. Chegou ao motel em dois minutos.
Estava no mesmo lugar, mas não era o mesmo motel. Este parecia novo, não devia ter mais de um par de anos, e era muito mais substancial. Seguia tendo um só andar, mas construída em forma de U, ao redor de um pátio central no que fervia uma fonte e cresciam flores. Faltava-lhe uma piscina, mas não lhe importou; a fonte era muito mais encantadora.
O empregado da recepção era um homem cinqüentão cuja crachá tinha escrito «Reuben». Agitaram-se suas lembranças, e surgiu um sobrenome que acompanhava no nome. Reuben Odell. Uma de suas filhas estava na mesma classe que Bella. Conversou um pouco com ela enquanto tomava o número de seu cartão de crédito e olhou com curiosidade o nome impresso na mesma, mas «Bella S. Hardy» não lhe soou de nada. Provavelmente nem sequer sabia como se chamava naquele tempo, assim, naturalmente, não o reconheceu agora.
— lhe darei a de número doze — disse, tirando a chave de seu compartimento. —Está na parte de trás do pátio, afastada da estrada, assim não a incomodará o tráfego.
—Obrigada. — Bella sorriu e tirou os óculos de sol para assinar o recibo do cartão de crédito.
O empregado piscou ao ver seu sorriso, e sua expressão se fez rapidamente mais cálida.
Estacionou o carro na parte posterior do pátio, em frente da habitação número doze. Ao abrir a porta se viu agradavelmente surpreendida. A habitação era maior que a maioria das habitações de motel, com um divã e uma mesinha de centro junto à porta e uma cama enorme ao fundo. A penteadeira era larga, com o televisor em um extremo e uma escrivaninha no lado mais próximo ao banheiro. O roupeiro era suficiente, o lavabo embutido da zona da penteadeira Luzia duas cubas e era o bastante grande para que o ocupassem duas pessoas sem chocar continuamente uma com a outra. Olhou o interior do banheiro esperando ver a banheira típica, mas em lugar dela havia uma generosa ducha de biombo trilho. Como ela nunca usava a banheira, alegrou-se de ter uma habitação adicional para o banho. Tendo-o tudo em conta, aquele pequeno motel estava por cima da média.
Tirou da bagagem as coisas da nécessaire e a única muda de roupa que havia trazido, e seguidamente ficou a riscar o plano de ação. Não deveria supor um grande problema averiguar o que queria saber, enquanto ninguém a reconhecesse como uma Smith. As cidades pequenas podiam ter uma memória prodigiosa, e a cidade de Nashville tinha pertencido aos Carter de corpo e alma, assim como a maior parte de seus edifícios.
Provavelmente, a maneira mais fácil e mais rápida seria ir à biblioteca e examinar os jornais antigos. Os Carter apareciam constantemente nas notícias, de modo que se Bob Carter tinha retornado de sua pequena correria e reatado seus negócios como de costume, não faria falta repassar muitas edições para que saltasse seu nome à vista.
Consultou seu relógio e viu que provavelmente não teria mais de uma hora para fazer o que tinha vindo a fazer; por isso recordava da pequena biblioteca, fechava por volta das seis no verão, e em uma cidade do tamanho de Nashville não era fácil que aquilo tivesse mudado. Tinha fome, mas o primeiro era o primeiro. O estômago podia esperar; a biblioteca, não.
Resultava curioso ver quão seletiva podia ser a memória; nunca tinha estado no motel quando vivia ali, e com freqüência tinha ido à biblioteca, sempre que tinha uma oportunidade, mas se tinha acordado da situação do motel e em troca não tinha nem idéia de onde se encontrava a biblioteca. Extraiu a pequena guia telefônica da penteadeira e procurou o endereço, e ao cabo de um momento recordou a localização da biblioteca. Agarrou a bolsa e as chaves, subiu no carro e retornou ao centro de Nashville.
Antes a biblioteca estava situada detrás da agência de correios, mas quando chegou ali descobriu com desencanto que o edifício tinha desaparecido. Olhou a seu redor e exalou um suspiro de alívio. Um pôster proeminente em frente do edifício novo contíguo à agência de correios proclamava que era a Biblioteca de Nashville. Os construtores tinham desdenhado as linhas lisas da arquitetura moderna e tinham preferido um estilo de antes da guerra, um edifício de tijolo vermelho de dois novelos com quatro colunas na fachada e grandes cristais com venezianas. Havia abundante espaço para estacionar, provavelmente mais do que se necessitava, já que tão somente havia três veículos estacionados. Bella aumentou o total a quatro ao situar o seu
A bibliotecária era uma mulher pequena e gordinha, muito loquaz, que não lhe resultava familiar absolutamente. Aproximou-se do mostrador e perguntou onde estavam os arquivos dos jornais antigos.
—Aqui mesmo — respondeu a mulher, saindo de trás do mostrador. —Já está tudo micro filmado, é obvio. Procura você alguma data em particular? Vou mostrar-lhe onde estão as microfichas e como funciona o exploratório.
—Eu agradeço — disse Bella. —Quero começar com os de uns dez anos, mas pode ser que tenha que me remontar um pouco mais inclusive.
—Não há nenhum problema. Teria-o havido até faz um par de anos, mas o senhor Carter insistiu em que se micro filmasse tudo quando mudamos a este edifício. Pode me acreditar, o sistema estava do mais antiquado; agora é muito mais fácil.
—O senhor Carter? —perguntou Bella. Mantendo um tom natural apesar do tombo que lhe tinha dado o coração. Assim, em efeito, Bob havia retornado.
—Nick Carter — repôs à bibliotecária. — A família virtualmente é a proprietária desta cidade, da paróquia inteira, já postos. Mas é um homem do mais agradável. —Fez uma pausa. —você daqui?
—Era-o, faz muito tempo — respondeu Bella. —Minha família se mudou para outra cidade quando eu era muito pequena. Ocorreu-me examinar os jornais velhos, se por acaso vejo as de alguns primos de meus pais. Com os anos lhes perdemos a pista, mas comecei a trabalhar em uma árvore genealógica da família e sinto curiosidade por saber o que foi deles.
Por ser uma explicação improvisada, não estava mau. As pessoas que tentavam procurar a pista de sua árvore genealógica sempre jogava mão das hemerotecas, pelo menos segundo o que tinha visto ela. A julgar pelo que tinha aprendido ao escutá-los falar e intercambiar histórias de extenso trabalho que finalmente descobria o paradeiro da bisavó Ruby pela parte materna da família, dita busca podia converter-se em um vício.
Tinha dado no prego, porque a bibliotecária lhe obsequiou um largo sorriso.
—Boa sorte, querida, espero que os encontre. Meu nome é Carlene DuBois. Chame-me se necessitar de ajuda. Embora fechemos as seis, e isso é dentro de menos de uma hora.
—Não demorarei muito — disse Bella enquanto procurava em sua memória uma família DuBois. Não lhe veio nenhuma à mente, assim que talvez tinham vindo a viver a aquela zona depois de que a família Smith partisse de modo tão ignominioso.
Uma vez que ficou a sós, ficou a procurar rapidamente nos arquivos, percorrendo uma página atrás de outra de Nashville, começando pela data em que foram expulsos da paróquia. Achou várias menções do Nick, e embora tratou de ignorá-las, se deu conta de que não podia. Apesar de que aquela noite, tanto tempo atrás, tinha-a curado de seu tolo amor, jamais tinha conseguido esquecê-lo; sua imagem permanecia em sua memória como uma ferida sem fechar que a importunava de vez em quando.
Rendeu-se impotente à pressão daquela cunha mental e repassou as páginas nas que tinha visto o nome do Nick. O semanário jamais publicava nada depreciativo nem escandaloso a respeito dos Carter ficava para os periódicos do Baton Rouge e de Nova Orleans, — mas as normais idas e vindas da família sempre apareciam pontualmente assinaladas para as mentes inquisitivas que desejassem as conhecer, que eram a maioria dos paroquianos. Os dois primeiros artigos eram simples mencione de que Nick tinha assistido a tal e qual ato. O terceiro artigo se encontrava na seção de negócios, e Bella, atônita, teve que lê-lo duas vezes para poder assimilar seu conteúdo.
Ninguém mais teria visto nada alarmante, nem sequer insólito, na frase: «... Nickolas Carter, que assumiu o controle financeiro das empresas da família, votou contra a medida de... » Assumido o controle das empresas da família. Por que teria feito tal coisa? Bob estaria ainda à frente de seus negócios já que, ao fim e ao cabo, tudo pertencia a ele. Bella se fixou na data do semanário; 5 de agosto, nem três semanas depois da fuga de Renée. O que teria acontecido?
Desconectou a máquina de visualizar os microfilmes e se reclinou na cadeira contemplando fixamente a tela
Mas Nick se tinha feito acusação dos negócios da família. Em lugar de atar todos os cabos soltos, Bella tinha descoberto um mais: por que tinha assumido Nick o comando?
Levantou-se e foi em busca de Carlene DuBois. O mostrador principal estava deserto, e o resto da biblioteca também parecia estar.
—Senhora DuBois? —chamou, e o som foi absorvido e amortecido pelas fileiras de livros. Entretanto, Carlene a tinha ouvido, porque se ouviu o rangido de seus sapatos de reveste de borracha sobre os ladrilhos.
—Já vou — disse Carlene em tom alegre, emergindo de trás da seção de livros de consulta. —Encontrou o que necessitava?
—Sim, obrigada. Entretanto, vi outra coisa que me desconcertou. Trata-se de um artigo muito pequeno, mas dizia que Nick Carter tinha assumido o controle dos negócios da família. —Isto aconteceu faz doze anos, e me resulta estranho, já que naquela época Nick não devia ter mais de vinte e poucos anos...
—Pois sim. Você deve ter partido antes do grande escândalo, ou talvez fosse muito jovem para prestar muita atenção a essa classe de coisas. Mudamos-nos para cá, OH, faz onze anos, e ainda era um tema de conversação, me acredite.
—Que escândalo? — Bella ficou tensa e sua perplexidade se transformou
—Veja, quando Bob Carter fugiu com sua amante. Eu não sei quem era, mas todo mundo diz que não era mais que uma vadia. Deve ter perdido totalmente a cabeça, isso é o único que me ocorre, para abandonar assim a sua família e a fortuna que possuía.
—Não retornou alguma vez? — Bella não podia ocultar sua surpresa, mas Carlene não viu nada anormal naquela reação.
—Após ninguém lhe viu nem um cabelo da cabeça. Quando se foi, foi. Há quem diz que sua esposa bastava para espantar a qualquer homem, mas eu não posso dizê-lo com segurança, porque jamais a conheci. As pessoas dizem que desde o dia em que seu marido a abandonou não saiu de casa. Nem sequer se incomodou em ficar em contato com ela nem com seus filhos.
Bella estava alucinada. Bob Carter adorava a seus filhos; com independência de seus sentimentos para sua esposa, jamais tinha existido a menor dúvida a respeito do muito que amava ao Nick e Leslie.
—Suponho que a senhora Carter se divorciaria dele — quis saber, mas Carlene negou com a cabeça.
—Não o tem feito. Imagino que não queria que ele se casasse de novo, se é que tinha a intenção de fazê-lo. Seja como for, jovem que era o senhor Nick, ficou no lugar de seu pai e se encarregou de tudo como se o senhor Carter seguisse estando ali. Provavelmente melhor, a julgar pelo que dizem.
—Eu era muito pequena para me lembrar muito dele — mentiu Bella. —Sim recordo que era uma espécie de herói local, que jogava futebol na LSU, coisas assim.
—Bom, querida, deixe que lhe diga que as coisas não mudaram muito—disse Carlene, e se abanou com a mão. —Por Deus, esse homem é um bombom, te posso assegurar. Põe-me o coração a cem por hora, e isso que lhe levo dez anos e estou a ponto de ser avó! —ruborizou-se, mas lançou uma gargalhada com surpreendente falta de pudor. —Talvez sejam esses olhos tão sedutores, que estão dizendo: «venha para cama», ou pode que seja o cabelo — Suspirou com encenação. —É um descarado, mas que mais dá?
—Ele sabe que você morre por ele? —brincou Bella.
—Querida, todas as mulheres desta cidade morrem por ele, e sim, ele sabe, o muito descarado. Carlene soltou outra gargalhada impudica. —Meu marido zomba de mim dizendo que vai se fazer um buraco na orelha para poder competir com ele.
Nick levava um buraco na orelha? Bella se surpreendeu a si mesmo cativa de sua imaginação, e se sacudiu para liberar-se. O que lhe estavam dizendo resultava surpreendente, e precisava estar a sós para refletir sobre isso.
Consultou seu relógio.
—Quase é hora de fechar, assim mais vale que me vá. Obrigada por sua ajuda, senhora DuBois. Foi um prazer conhecê-la.
—O mesmo digo eu. —Carlene fez uma pausa. —Oh, sinto muito, não entendi seu nome.
Porque não o havia dito, mas Bella não viu motivo para ocultá-lo.
—Sou Bella Hardy.
—Bem, encantada em conhecê-la, Bella. É um nome muito bonito e passado de moda. Já não se ouve muito por aqui.
—Não, suponho que não. — Bella voltou a olhar o relógio. — Adeus. E obrigada outra vez por sua ajuda.
—Quando quiser estou ao seu dispor.
Bella retornou ao motel, mas antes se deteve
Não gostava muito de comida rápida, mas não queria ir a um restaurante onde pudessem reconhecê-la, de modo que se conformou. Comeu a metade e atirou o resto ao lixo, muito alterada para ter apetite.
Bob Carter tinha desaparecido. Mas se não fugiu com a Renée, o que lhe tinha acontecido?
Bella se tombou na cama e contemplou fixamente o teto, tratando de ordenar os fatos. Bob não teria abandonado sua casa, sua família e sua fortuna sem ter uma razão. Todo mundo pensou que Renée era uma razão, mas Bella sabia que não. E embora simplesmente se fartasse de seu matrimônio, por que não pediu o divórcio? Os Carter eram católicos, mas o divórcio não constituía um problema a menos que queria voltar a casar-se. Mas é que nunca deu a impressão de não ser feliz; por que não teria que sê-lo? Seu mundo era tal como ele o queria. A Bella não ocorria nenhuma razão pela qual ir-se de forma tão brusca, sem dizer uma palavra, e não ficar jamais em contato com sua família.
A não ser que estivesse morto.
Aquela possibilidade — não, mas bem probabilidade— resultava espasmos. Bella experimentou uma sensação quase de mal-estar enquanto ia sopesando e descartando situações possíveis. Ao melhor Bob se foi para estar fora só um par de dias e de repente ficou doente, e possivelmente teve um acidente; mas se qualquer daquelas possibilidades se deu, o teriam encontrado e identificado, teria se comunicado o fato a sua família. Mas isso não tinha ocorrido. Bob Carter tinha desaparecido na mesma noite em que fugiu sua mãe.
Céu santo, o teria matado Renée? Bella se incorporou na cama e se passou as mãos pelo cabelo, aturdida. Não podia descartar aquela idéia, mesmo que não se imaginava a sua mãe fazendo algo semelhante. Renée tinha a moral de um gato de ruas, mas não era não tinha sido nunca, uma pessoa violenta.
Amos, então? Isso lhe parecia mais plausível. Acreditava-se que podia sair bem parado, Amos era capaz de algo. Mas recordava muito bem aquela noite; Amos tinha chegado a casa cambaleando-se ao redor das nove, e em seguida se derrubou e posto a amaldiçoar porque Renée não estava ali. Pouco depois chegaram Russ e James, também bêbados. Poderia ser que algum dos dois tivesse matado ao Bob, ou talvez os dois juntos? Mas nada parecia fora do ordinário, e Bella teria jurado que eles se surpreenderam tanto como ela de que Renée não tivesse voltado para casa. Mais que isso, simplesmente não lhes importava o mínimo que sua mãe se deitasse com o Bob; e já postos, tampouco importava a Amos.
Quem mais podia ser? Possivelmente a senhora Carter. Ao melhor Jane tinha matado a seu marido porque estava cansada de suas infidelidades, embora segundo todas as notícias lhe fosse infiel do começo de seu matrimônio e a ela não pareceu lhe importar nunca, inclusive se sentia agradecida. Seu caso com Renée durou anos; por que ia se opor a ele de repente? Não, Bella duvidava que Jane se preocupasse sequer de arreganhá-lo, e muito menos de complicar a vida com um assassinato.
Só ficava uma pessoa: Nick.
Fez um esforço por rechaçar aquela idéia. Não podia ter sido Nick. Lembrava-se da expressão de sua cara ao entrar no barraco aquela manhã e quando retornou aquela desgraçada noite.
Lembrava-se de sua fúria, de seu ódio implacável. Nick acreditava que seu pai tinha fugido com Renée, e estava furioso.
Mas Nick era quem mais tinha que ganhar com a morte de seu pai. Ao desaparecer Bob, ele tinha tomado as rédeas da fortuna dos Carter e se feito ainda mais rico, segundo o que tinha comentado a bibliotecária. Desde que nasceu tinha sido preparado para ocupar algum dia o posto de seu pai. Teria se cansado de esperar, e teria tirado ao Bob do meio?
Os pensamentos corriam por sua mente igual a um esquilo encerrado em uma jaula que se golpeasse contra os barrotes. Naquele momento a porta da habitação matraqueou por causa de uma série de golpes fortes que fizeram sobressaltar-se a Bella, surpreendida, mas não alarmada. Por que ia chamar alguém a sua habitação? Ninguém sabia onde estava, de modo que não podia ser uma mensagem do escritório. Levantou-se e foi até a porta, mas não a abriu. Reparou em que tampouco havia mira.
—Quem é?
—Nick Carter.
O coração quase deixou de lhe pulsar. Tinham transcorrido doze anos desde que ouviu pela última vez aquela voz grave, profunda, mas sentiu que lhe falhavam as forças ao ouvi-la de novo, a emoção mesclada com o medo. Ele a tinha ferido mais gravemente que nenhuma outra pessoa em sua vida, mas ainda tinha o poder de eletrizar cada célula de seu corpo com nada mais que sua voz. O só fato de ouvi-lo outra vez a fez sentir-se como a menina que era aos quatorze anos, trêmula e agitada por sua proximidade. E sempre, sempre, estava aquele desagradável contrapeso que atirava dela na direção contrária: a viva lembrança do Nick dizendo: «É lixo». Jamais tinha conseguido encontrar o equilíbrio no que ao Nick se referia, jamais tinha conseguido esquecê-lo, mescla de sonho e pesadelo.
O oportuno de sua chegada lhe pôs a flor da pele. O teria convocado ela com seus pensamentos? Levava ali de pé tanto tempo que a porta matraqueou de novo sob o impacto do punho do Nick.
—Abra. —Em seu tom se percebia a férrea autoridade de alguém que esperava ser obedecido imediatamente, e que tinha a intenção de encarregar-se de que assim fora.
Com cautela, Bella soltou a corrente da porta e abriu. Elevou a vista por volta do homem ao que não tinha visto em uma dúzia de anos. Não importou; não importava quanto tempo tivesse passado, ela o teria reconhecido de todas as formas. Ele permaneceu no corredor, sem dignar-se a entrar, e o impacto de sua presença física deixou Bella sem fôlego.
Era maior do que recordava, mas é que um metro oitenta sempre parecia ser mais quando se tem que levantar a vista. Seguia tendo magras a cintura e os quadris, mas se tinha alargado de peito e ombros, tinha adquirido a dura solidez de um homem adulto. E era sem nenhum gênero de dúvidas um homem, fazia muito que tinha perdido todo traço juvenil. Seu rosto era mais magro, mais forte, mais duro, com sulcos que emolduravam sua boca e rugas de maturidade nos olhos. Estava contemplando a cara de um pirata, e compreendeu por que Carlene DuBois tremia ante a só menção de seu nome. Seu cabelo loiro, No lóbulo de sua orelha esquerda brilhava um minúsculo diamante. Quando tinha vinte e dois anos era impressionante; aos trinta e quatro era perigoso, um pirata de caráter e de aspecto. O fato de lhe olhá-lo provocou calor e tremor há um tempo, o coração de repente começou a lhe pulsar com tal força que se perguntou se ele chegaria para ouvi-lo. Reconhecia os sintomas, e odiou encontrar-se naquele estado. Deus, é que estava condenada a passar a vida inteira desfalecendo ao ver ou ouvir o Nick Carter? Por que não podia superar aquele resíduo de reação infantil?
Por cima da fina linha do nariz, os pecaminosos olhos claros de Nick seguiam sendo frios e implacáveis.
O sensual contorno de sua boca se curvou ao baixar a vista para olhá-la a ela.
—Bella Smith — disse. —Reuben tinha razão; é a viva imagem de sua mãe.
Mas se ele tinha mudado, ela também. Bella tinha adquirido segurança em si mesmo a base de esforço. Obsequiou-lhe um sorriso frio e rápido e respondeu:
—Obrigada.
—Não é um elogio. Não sei por que está aqui, e não importa.
Este motel é de minha propriedade, e você não é bem-vinda, de modo que tem meia hora para recolher suas coisas e partir. —Esboçou um sorriso que na realidade não era um sorriso. —Ou tenho que chamar o xerife de novo para me liberar de ti?
A lembrança daquela noite flutuou entre ambos, com tal força que quase era tangível. Por um instante Bella viu outra vez os faróis, experimentou a confusão e o terror de então, mas se negou a permitir que lhe provocasse o pânico. Em vez disso, encolheu-se de ombros com gesto elegante, deu-lhe as costas e foi até a zona do banheiro, onde recolheu eficientemente seus artigos de penteadeira, meteu-os em sua bolsa de viagem e desprendeu a única muda de roupa do cabide. Plenamente consciente daqueles olhos que lhe brocavam as costas, dobrou a roupa sobre o braço, deslizou-se em seus sapatos, agarrou sua bolsa e passou pressurosa ao lado do Nick sem alterar em nenhum momento a expressão serena de seu rosto.
Quando arrancou o carro e se afastou do motel, rumo ao Baton Rouge, Nick ainda seguia de pé junto à porta da habitação, olhando-a fixamente.
Bella Smith! Que tal isso como uma rajada procedente do passado? Nick ficou olhando as luzes traseiras do carro até que se perderam de vista. Quando Reuben o chamou para lhe dizer que acabava de chegar ao motel uma mulher que era a viva imagem do Renée Smith e que se registrou com o nome do Bella S. Hardy, não lhe coube nenhuma dúvida a respeito de sua identidade. Assim que um membro da origem dos Smith por fim tinha tido a coragem de retornar a Nashville! Não lhe surpreendeu que fora Bella; ela sempre tinha tido mais guelra que o resto de sua família junto.
O qual não significava que ele fora a deixá-la ficar.
Voltou-se para a habitação iluminada que ela tinha abandonado com tão pouco drama.
Sem nenhum drama, maldita fora. Queria-se uma briga, ela certamente não lhe deu o capricho. Nem sequer tinha pedido que lhe devolvessem o dinheiro de seu cartão de crédito. Sem pestanejar sequer, tinha recolhido suas coisas e saído. Não tinha demorado nem um minuto; diabos, nem trinta segundos.
Foi-se, e à exceção da colcha enrugada da cama, a habitação estava tão imaculada como se jamais tivesse estado ali, mas sua presença ainda persistia no ambiente. Era um aroma doce, ligeiramente almiscarado, que flutuava no ar e que anulava o aroma de rançoso que era endêmico de todas as habitações de motel. Nick sentiu como lhe acelerava o sangue em uma reação instintiva. Era o aroma de mulher, universal em certos aspectos, exclusivo dela
Bella Smith. O só feito de ouvir aquele nome havia lhe trazido de novo à memória aquela noite, e havia tornado a vê-la, graciosa e silenciosa, com aquela cabeleira de cor vermelha escura que lhe caía sobre os ombros e aquele corpo esbelto cuja silhueta se recortava através do fino tecido da camisola, arrojando um sensual feitiço sobre os agentes e sobre ele mesmo. Naquela época não era mais que uma menina, pelo amor de Deus, mas já então possuía a aura de sensualidade de sua mãe.
Quando ela abriu a porta da habitação e ele a viu de novo, ficou estupefato. Parecia-se tanto a Renée que sentiu desejos de estrangulá-la, mas ao mesmo tempo resultava impossível confundi-la com sua mãe. Bella era um pouco mais alta, mais magra que voluptuosa, embora se tinha recheado muito bem nos doze anos que tinham transcorrido desde a última vez que a viu. Sua cor era a mesma que a de Renée: a juba ruiva escura, os olhos semicerrados, verdes e com bolinhas douradas, a pele translúcida. Mas o que o havia posto furioso era aquela sensualidade carente de todo esforço e a reação involuntária que tinha sofrido ele. Não era nada que ela houvesse dito ou feito, nem sequer o que estava usando, que era um elegante traje de jaqueta. Uma Smith vestindo de traje, Por Deus! Não, tratava-se de algo intrínseco de seu ser, algo que também possuía Renée. A filha mais velha —não recordava seu nome— não tinha aquele potente atrativo; era fácil e tola, não sexy. Bella era sexy. Não tão descaradamente como Renée, mas com a mesma intensidade. Ao cravar o olhar naqueles olhos de gato pensou na cama que havia atrás, pensou em lençóis revoltas e pele ardente, em tê-la nua debaixo dele e sentir como suas coxas lhe envolviam os quadris enquanto ele encontrava a branda abertura que havia entre suas pernas e empurrava ao interior...
Nick rompeu a suar e soltou um juramento em voz alta em meio da habitação vazia.
Maldição, não era melhor que seu pai! Só um fugaz aroma e estava disposto a esquecer-se de tudo em seu afã de deitar com uma mulher dos Smith. Não, não a todas as mulheres dos Smith, corrigiu mentalmente. Pelo menos disso tinha que dar graças a Deus. Tinha visto o capitalista atrativo de Renée, mas lhe pareceu resistível, e a idéia de compartilhar uma mulher com seu pai lhe resultava repugnante. A filha mais velha não tinha nada que resultasse atraente a seus olhos. Entretanto, Bella... Se fosse qualquer outra coisa exceto uma Smith, não descansaria até tê-la na cama e comodamente instalada para uma longa galopada.
Mas era uma Smith, e a só menção daquele sobrenome o punha furioso. Sua família tinha ficado destroçada por culpa de Renée, e jamais poderia esquecê-lo. Esquecê-lo era impossível, tendo que viver todos os dias com as conseqüências da deserção do Bob. Sua mãe se retraiu até converter-se em uma sombra do que tinha sido. Passou-se mais de dois anos sem sair de sua habitação, e inclusive agora se negava a aventurar-se fora da casa exceto para ir ao médico
Jane era um espectro de mulher triste e silenciosa, que se passava a maior parte do tempo em sua habitação. Tão somente Alex Mclean conseguia convencê-la a base de mimos para que sorrisse um pouco e contribuía um pingo de vida a seus olhos azuis. Algum tempo atrás, Nick se tinha dado conta de que Alex se apaixonou por sua mãe, mas era uma causa perdida. Jane não só era alheia a aquela devoção, mas também não teria feito nada a respeito embora fora consciente. Estava casada com o Bob Carter, e não havia mais que dizer. O divórcio era algo impensável. Às vezes Nick se perguntava se Jane seguiria agarrada à esperança de que Bob retornasse. Ele mesmo tinha aceito fazia tempo que jamais voltaria a ver seu pai. Se Bob tivesse tido intenção de voltar, não teria enviado o poder escrito que recebeu Nick dois dias depois de seu desaparecimento.
Tinha sido selado na agência de correios do Baton Rouge o dia em que se foi; a carta estava redigida de forma lacônica e precisa, sem nenhuma indicação pessoal. Nem sequer a tinha assinado com um «Te amo, papai», mas sim se tinha limitado a um formal «Atenciosamente, Bob Carter».
Ao ler aquilo, Nick soube que seu pai se foi para sempre, e lhe encheram os olhos de lágrimas por primeira e única vez.
Não sabia o que teria feito sem o Alex naqueles primeiros meses de desespero nos que lutou denodadamente por dar solidez a sua posição com os acionistas e diversas juntas diretivas.
Alex o tinha guiado por entre os escolhos, brigou a seu lado por ganhar qualquer vantagem, fez tudo o que pôde para ajudá-lo com Jane e Leslie. Alex também tinha sofrido pela perda de seu melhor amigo. Bob e ele tinham crescido juntos, eram quase como irmãos. Ficou perplexo ao ver que Bob realmente tinha dado as costas a sua família por Renée Smith e se partiu sem sequer despedir-se.
Em alguns aspectos, Leslie era agora mais forte que antes. Não estava tão necessitada emocionalmente, não dependia tanto dos outros. Tinha pedido perdão ao Nick por seu intento de suicídio e lhe tinha assegurado que jamais voltaria a fazer nada tão estúpido. Mas embora estivesse mais forte, também estava mais distanciada, como se aquele paroxismo de dor e aflição tivesse consumido seu excesso de emotividade e a tivesse deixado tranqüila, mas também distante. Tinha cobrado interesse pelo trabalho de seu irmão e gradualmente se foi convertendo em uma excelente ajudante, em quem alguém se podia apoiar com plena confiança em seu critério e sua capacidade, mas era quase tão solitária como Jane. Leslie sim que saía; era muito particular a respeito de seu aspecto físico, por isso acudia regularmente ao salão de beleza e fazia um esforço para se vestir bem. Entretanto, fazia anos que não saía com nenhum homem. Ao princípio, Nick pensava que se sentia envergonhada por seu intento de suicídio e que iria relaxando-se à medida que desaparecessem as cicatrizes. Mas não tinha sido assim, e com o tempo compreendeu que não era a vergonha o que a encerrava em casa.
Simplesmente não a interessava relacionar-se com ninguém. O fazia se o exigia o trabalho, mas em um nível pessoal declinava tudo os convites e rechaçava de plano as sugestões que lhe expor Nick para que retornasse à cena social. O único que ele podia fazer para aumentar sua segurança era lhe demonstrar o muito que confiava nela para o trabalho e lhe pagar um bom salário para que tivesse uma prova tangível do que valia, além de uma sensação de independência.
Entretanto, no ano anterior, o novo xerife Michael McFane tinha conseguido convencê-la de que saísse com ele. Depois disso, Leslie o via com certa regularidade. Nick se sentiu tão aliviado que lhe dava vontades de chorar. Possivelmente, só possivelmente, sua irmã teria a oportunidade de levar uma vida normal, depois de tudo.
Não, jamais esqueceria o que os Smith lhe tinham feito a sua família. E com sorte, jamais voltaria a ver Bella Smith.
Obrigada. Aquela tinha sido a única palavra que tinha pronunciado Bella, além de perguntar quem batia na porta. Mostrou-se tranqüila e enigmática, observou-o com ligeira diversão, com um aprumo que não diminuiu ante a ameaça dele. Embora não tinha sido uma ameaça, a não ser uma promessa. Se não se fosse sozinha, a teria acompanhado pela segunda vez para fora da cidade, e teria tido que chamar o xerife, porque se a tocasse ele mesmo perderia o controle, e sabia.
Agora era uma mulher, não a menina que ele recordava. Sempre tinha sido diferente do resto dos Smith, uma criatura vidente do bosque que tinha crescido até converter-se em uma tentação tão grande como sua mãe. Era óbvio que algum pobre idiota o tinha acreditado assim, porque o fato de que seu sobrenome fora agora Hardy significava que se casou, e que apesar de que não usava aliança. Fixou-se em suas mãos, esbeltas, elegantes, bem cuidadas, e lhe fez certa graça que não usasse um aliança de casamento. Renée tampouco o usava; cortava-lhe os vôos. Estava claro que sua filha se sentia igual, pelo menos quando viajava sem o desconhecido senhor Hardy.
Parecia desfrutar de prosperidade; ou seja, que, como os gatos, tinham caído de pé. Não se surpreendeu. As mulheres dos Smith sempre tinham tido um talento especial para encontrar a alguém que as mantivesse. Seu marido devia ser um dos bons, pobre tolo. Teria-lhe gostado de saber com que freqüência deixava a seu marido em casa enquanto ela se ia a passeio.
E também lhe teria gostado de saber por que tinha retornado a Nashville. Ali não tinha nada, nem família nem amigos. Os Smith não tinham tido amigos, só vítimas. Tinha que saber que não ia ser recebida com os braços abertos. Provavelmente tinha acreditado que ia poder deixar cair por ali sem que ninguém se desse conta, mas as pessoas do lugar tinham muito boa memória, e porque era parecida com sua mãe. Reuben a tinha reconhecido assim que se tirou os óculos de sol.
Bom, que mais dava. Pela segunda vez tinha liberado à cidade daquela praga dos Smith, e com muito menos trabalho que doze anos antes. Só desejou que a moça não tivesse vindo que não tivesse reavivado a potente lembrança de sua involuntária reação a ela, que não tivesse substituído a imagem de menina que guardava dela pela imagem que tinha agora de mulher. Desejou não ter ouvido sua voz suave e tranqüila dizer aquele «obrigado».
Bella conduziu a velocidade constante pela estrada escura sem permitir-se parar embora por dentro fosse tremendo como se fora de gelatina. Negava-se a deixar que sua reação a dominasse. Anos atrás tinha descoberto de forma muito dura o que Nick Carter pensava dela, e tinha aprendido a enfrentar-se à dor. Não estava disposta a permitir que voltasse a lhe fazer dano nem a esmagá-la. Não lhe tinha ficado mais remédio que partir do motel, porque tinha visto a implacável determinação que mostravam seus olhos e sabia que não estava atirando um farol quando falou de jogá-la pela força. Por que teria que reprimir-se de fazê-lo, quando não tinha duvidado um momento em expulsar toda sua família? Não obstante, sua serena obediência não significava que ele tivesse ganho.
A ameaça do xerife não a assustou. O que a assustou e zangou de uma vez foi a intensidade de sua própria reação para o Nick. Inclusive depois de todos aqueles anos, depois do que lhe tinha feito a sua família, era tão impotente como um cão para impedir aquela reação. Era para voltar-se louca. Não tinha reconstruído sua vida para deixar agora que Nick a reduzira à categoria de lixo, da que alguém quer ver-se livre o mais rápido possível.
Fazia muito tempo que tinha passado a época em que podiam intimidá-la. A menina silenciosa e vulnerável de antes tinha morrido em um verão caloroso, doze anos atrás. Bella seguia sendo uma pessoa bastante calada, mas tinha aprendido a sobreviver, a utilizar sua férrea vontade e sua determinação para obter o que queria da vida. Inclusive tinha adquirido suficiente segurança em si mesmo para dar rédea solta a seu temperamento de vez
Não podia permitir que a pisoteasse de novo. Não era só uma questão de honra; ainda não tinha averiguado o que tinha acontecido ao Bob. Não podia esquecer-se disso, não podia deixá-lo passar.
Um plano começou a tomar forma em sua ágil mente, e um sorriso curvou seus lábios enquanto conduzia o carro. Antes de que se desse conta, Nick se encontraria superado
E também queria demonstrar ao Nick que estava equivocado a respeito dela desde o começo.
Desejava-o com tanta intensidade que quase podia já saborear o sabor doce da vitória. Devido a ela o tinha amado tão profundamente desde menina, a que ele tinha sido o juiz duro e implacável, o executor, por assim dizê-lo, à noite em que os expulsou a todos da cidade, tinha adquirido muito importância em sua mente. Mas não devia ser assim, deveria ter podido esquecê-lo, mas aqueles eram os fatos; não se consideraria outra coisa que lixo até que Nick se visse obrigado a admitir que ela fosse uma pessoa decente, moral e triunfadora.
Não só queria averiguar o que lhe tinha ocorrido ao Bob; ao melhor a coisa tinha começado assim, ou talvez ocultasse a verdade a si mesmo, mas agora tinha já a certeza.
Queria ir para casa.
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