—Papai não veio a casa ontem à noite.
Leslie estava de pé junto à janela do comilão, com o rosto contraído pela vergonha.
Nick continuava tomando o café da manhã; não havia muitas coisas que pudessem lhe tirar o apetite. De modo que aquela era a razão pela que Leslie se levantou tão cedo, porque por regra geral não se movia da cama até as dez ou mais. O que teria feito? Esperar até que Bob voltasse para casa? Suspirando, perguntou-se o que pensaria Leslie que podia fazer ele sobre o modo em que passava o tempo seu pai. Mandá-lo à cama sem jantar? Não recordava nenhuma época em que Bob não tivesse tido uma amante, embora Renée Smith certamente tivesse muito mais poder de permanência que o resto.
A sua mãe, Jane, não lhe importava absolutamente onde passava a noite Bob, sempre que não fora com ela, e simplesmente fingia que as aventuras de seu marido não existiam. Como a Jane não importava, ao Nick tampouco. Teria sido diferente se Jane se sentisse afligida, mas esse não era precisamente o caso. Não era que não amasse ao Bob; Nick supunha que sim o amava, a sua maneira.
Mas é que Jane claramente desagradava o sexo, desagradava-lhe que a tocassem, embora fosse por acaso. Para o Bob, ter uma amante era a melhor solução de todas. Não tratava mal a Jane, e embora jamais se incomodava em esconder suas aventuras, a postura dela como esposa era segura.
Era um acerto muito a antiga que tinham seus pais, embora ao Nick não gostasse de nada ter algo assim quando por fim decidisse casar-se, mas convinha a ambos.
Entretanto, Leslie nunca tinha podido ver daquela maneira. Sentia-se dolorosamente protetora com Jane, pois estava unida a ela de uma forma em que Nick jamais poderia estar, e imaginava que Jane se sentia humilhada e ferida pelas aventuras de seu marido. Ao mesmo tempo, Leslie adorava a seu pai e nunca era tão feliz como quando lhe prestava atenção. Em sua mente se fazia uma idéia de como tinham que ser as famílias, estreitamente unidas e amorosas, sempre se apoiando entre si, os pais entregues um ao outro, e levava toda a vida tratando de que sua família encaixasse com aquela idéia.
—Sabe de mamãe? —perguntou Nick com calma, e se absteve de lhe perguntar a Leslie se de verdade acreditava que ao Jane ia importar lhe algo se soubesse. Às vezes sentia pena de sua irmã, mas também a amava e não tratava deliberadamente de lhe fazer dano.
Leslie sacudiu a cabeça em um gesto negativo.
—Ainda não se levantou.
—Então, Do que serve preocupar-se? Para quando se levantar, quando chegar papai ela acreditará que retorna de algum lugar aonde terá ido esta manhã.
—Mas esteve com essa vadia! — Leslie se voltou para olhar ao Nick com os olhos alagados de lágrimas. — Com essa Smith.
—Você não sabe. Pode ser que passou a noite jogando pôquer. Bob gostava de jogar pôquer, mas Nick duvidava que os naipes tivessem algo que ver com sua ausência. Conhecia seu pai, e o conhecia muito bem, e sabia que era muito mais provável que tivesse passado a noite com Renée Smith ou com alguma outra mulher que lhe tivesse chamado a atenção. Renée era uma néscia se acreditava que Bob era mais fiel a ela que a sua esposa.
—Você acha? —perguntou Leslie, ansiosa de acreditar em qualquer desculpa que não fosse a mais provável.
Nick se encolheu de ombros.
—É possível.
Também era possível que um dia um meteoro se estrelasse contra a casa, mas não era muito provável. Bebeu o que ficava do café e empurrou para trás sua cadeira. — Quando chegar lhe diga que fui ao Baton Rouge inspecionar a propriedade da que estivemos falando. Estarei de volta as três, como muito tarde. Como sua irmã seguia parecendo tão desamparada, passou-lhe um braço pelos ombros e lhe deu um apertão. Por algum motivo Leslie tinha nascido sem a decisão nem a arrogante segurança do resto da família. Até Jane, por mais distante que se mostrasse, sempre sabia exatamente o que queria e como consegui-lo. Leslie sempre parecia necessitada frente às fortes personalidades de outros membros de sua família.
Enterrou a cabeça no ombro do Nick durante uns instantes, igual fazia quando era pequena e corria a seu irmão maior cada vez que passava algo mau e Bob não estava ali para arrumar as coisas. Embora fosse mais velho só dois anos, sempre se tinha mostrado protetor com ela, e inclusive desde menino sabia que sua irmã carecia da fortaleza interior que ele possuía.
—E o que faço se na realidade esteve com essa vadia? —perguntou Leslie com a voz amortecida contra o ombro de Nick.
Este procurou reprimir sua impaciência, mas lhe filtrou algo no tom de voz.
—Não fará nada. Não é teu assunto.
Ela se tornou para trás, ferida, e ficou olhando com um gesto de recriminação.
—Como pode dizer isso? Estou preocupada com ele!
—Já sei. —Nick conseguiu adoçar o tom. — Mas é uma perda de tempo, e ele não vai te dar agradecer.
—Você sempre te opõe de sua parte, porque é igual a ele! —As lágrimas já lhe escorregavam lentamente pelas bochechas, e se voltou de costas. — Estou certa que essa propriedade do Baton Rouge resulta que tem duas pernas e um par de tetas grandes. Pois nada mais, que te divirta!
—Assim o farei — repôs Nick com ironia. Era verdade que ia ver uma propriedade; o que faria depois era outra história. Era um homem jovem, são e forte, com um impulso sexual que não tinha dado sinais de ir a menos desde sua adolescência. Era uma queimação constante no ventre, uma dor faminta nos testículo. Era o bastante afortunado de poder ter mulheres para acalmar aquele apetite, e o bastante cínico para dar-se conta de que o dinheiro de sua família contribuía muito a seu êxito sexual.
Não lhe importava quais fossem os motivos da mulher, se vinha a ele porque gostava e desfrutava de seu corpo ou se tinha o olho posto na conta bancária dos Carters. As razões não importavam, pois o único que queria era ter a seu lado um corpo suave e quente que absorvesse seu impetuoso desejo sexual e lhe desse satisfação durante um tempo. Nunca tinha amado a uma mulher, mas estava claro que amava o sexo, amava tudo o que tinha que ver com ele: os aromas, as sensações, os sons. Em particular, maravilhava-o seu momento favorito, o instante da penetração, quando notava a rápida resistência do corpo da mulher à pressão que exercia ele, e logo a aceitação, a sensação de ser absorvido e rodeado pela carne quente, tensa, úmida.
Deus! Aquilo era maravilhoso! Sempre punha supremo cuidado em proteger-se contra uma gravidez não desejada e usava uma camisinha embora a mulher dissesse que estava tomando a pílula, porque sabia que as mulheres mentiam em coisas como essas e um homem inteligente não devia correr riscos.
Não sabia com segurança, mas suspeitava que Leslie ainda fosse virgem. Embora fosse muito mais emocional que Jane, ainda havia nela algo de sua mãe, uma espécie de profundo distanciamento que até o momento não tinha permitido que se aproximasse muito nenhum homem. Era uma estranha mescla das personalidades de seus pais, tinha recebido uma parte do frio distanciamento de Jane, mas, nada de sua segurança em si mesmo, e outra parte da natureza emocional do Bob sem sua intensa sexualidade. Por outro lado, Nick possuía a sexualidade de seu pai moderada pelo controle de Jane. Apesar do muito que desejava o sexo, não era escravo dele como o era Bob. Ele sabia quando e como dizer não. Além disso, graças a Deus, pelo visto ele tinha mais sensatez escolhendo as mulheres que Bob.
Atirou de uma mecha do cabelo claro de Mônica.
—Vou chamar ao Alexander, a ver se sabe onde está papai. —Alexander James, um advogado de Prescott, era o melhor amigo do Bob.
Os lábios de Leslie tremeram, mas sorriu através das lágrimas.
—Ele irá procurar papai e lhe dirá que venha para casa.
Nick soltou um bufo. Resultava incrível que sua irmã tivesse chegado aos vinte sem ter aprendido absolutamente nada dos homens.
—Eu não estou tão seguro disso, mas pode ser que assim fique tranqüila.
Tinha a intenção de dizer a Leslie que Bob se encontrava em uma partida do pôquer, embora Alexander soubesse até o número de habitação do motel onde Bob estava passando a manhã transando.
Foi ao escritório que Bob atendia a miríade de juros financeiros dos Carters e no que ele mesmo estava aprendendo a atendê-los. Ao Nick o fascinavam as complexidades dos negócios e as finanças, tanto que voluntariamente tinha deixado passar a oportunidade de jogar futebol como profissional para mergulhar-se de cabeça no mundo dos negócios. Não tinha suposto um grande sacrifício para ele; sabia que era o bastante bom para jogar como profissional, porque tinham observado seu rendimento, mas também sabia que não tinha interesse de ser uma estrela. Se tivesse dedicado sua vida ao futebol, teria jogado durante oito anos ou assim, isso se tivesse tido a sorte de não lesar-se, e teria ganho um salário bom mas não espetacular. Ao final, o que pesava mais era que, por mais que gostasse do futebol, amava mais os negócios. Aquele era um jogo ao que podia jogar durante muito mais tempo que o futebol, além de ganhar muitíssimo mais dinheiro, e era uma briga entre iguais.
Embora ao Bob tivesse estalado o peito de orgulho ao ver seu filho como profissional do esporte, Nick opinava que em certo modo se havia sentido aliviado ao ver que elegia retornar a casa. Nos poucos meses que tinham transcorrido desde que Nick se graduou Bob não tinha feito outra coisa que lhe encher a cabeça de conhecimentos sobre os negócios, material que não podia encontrar-se em um livro de texto.
Nick passou os dedos pela madeira polida do grande escritório. Havia uma enorme fotografia de Jane em um canto do mesmo, rodeada de fotos menores dele e de Leslie em diversas etapas de seu crescimento, como uma rainha com seus súditos reunidos a seu redor. A maioria das pessoas teriam pensado que era uma mãe com seus filhos pegos à saia, mas Jane não era nem um pouco maternal. O sol matinal iluminava de lado a foto e ressaltava detalhes que pelo geral passavam inadvertidos, e Nick se deteve olhar a imagem fixa do rosto de sua mãe.
Era uma mulher muito bonita, embora possuísse um tipo de beleza muito diferente a de Renée Smith.
Renée era o sol, quente, audaz e brilhante, enquanto que Jane era a lua, distante e fria. Tinha um cabelo claro, abundante e sedoso, que tinha penteado em um sofisticado coque, e uns encantadores olhos castanhos que não tinha herdado nenhum de seus filhos. Alguns paroquianos se perguntaram se Bob Carter não se teria casado com alguém inferior. Mas ela tinha resultado ser mais régia do que poderia havê-lo sido nenhuma outra nascida para esse papel, e aquelas antigas dúvidas tinham ficado esquecidas fazia já muito tempo. Quão único ficava era o nome próprio dele, Gene, que era o sobrenome da família dela, mas como fazia muito que tinha sido contado ao Nick, a maioria das pessoas acreditavam que o tinham escolhido porque se parecia muito ao nome do pai do menino.
Sobre a mesa estava a agenda de entrevistas do Bob, aberta. Nick apoiou um quadril contra a mesa e percorreu com a vista as entrevistas que tinha apontadas para aquele dia. Seu pai tinha uma reunião com o William Gene, o banqueiro, às dez. Pela primeira vez, Nick sentiu uma pontada de inquietação. Bob nunca tinha permitido que suas mulheres interferissem em seus negócios, e jamais ia a uma entrevista sem barbear e sem haver vestido roupa limpa.
Em seguida marcou o número do Alex James, e sua secretária respondeu ao primeiro toque.
—James e Anderson, advogados.
—Bom dia, Andrea. Alex já chegou?
—É obvio — repôs ela com bom humor, pois tinha reconhecido imediatamente o distintivo tom grave do Nick, semelhante ao veludo. — Já sabe como é. Faria falta um terremoto para que não entrasse pela porta ao dar as nove. Espera um momento, vou chamá-lo.
Nick ouviu o estalo da chamada em espera, mas conhecia Andrea muito bem para pensar que estava falando com o Alex pelo interfone. Tinha estado naquele escritório muito freqüentemente, tanto quando menino como já homem, e sabia que a única ocasião em que Andrea usava o interfone era quando havia na sua frente um desconhecido. A maioria das vezes se limitava a girar-se em sua cadeira e levantar a voz, já que o escritório do Alex estava justo as suas costas, com a porta aberta.
Nick sorriu ao recordar como Bob ria a gargalhadas ao lhe contar que Alex tinha tentado uma vez que Andrea adotasse uma atitude mais formal, mais própria de um escritório de advogados. O pobre Alex, tão pouco severo, não tinha a menor possibilidade de vencer a sua secretária. Esta, sentindo-se ofendida, voltou-se tão fria que o escritório se congelou. Em lugar do habitual «Alex» começou a chamá-lo «senhor James» cada vez que se dirigia a ele, utilizava sempre o interfone, e a cômoda camaradagem que havia entre ambos se esfumou. Quando ele se parava diante da mesa dela para bater um papo, Andrea se levantava para ir ao toalete. Todos os pequenos detalhes dos que em outro tempo se tinha ocupado como algo normal, tirando a Alex uma boa parte de trabalho, agora apareciam amontoados sobre a mesa dele. Alex começou a chegar mais cedo e sair mais tarde, enquanto Andrea de repente passou a ter um horário do mais preciso. Não cabia pensar em substituí-la; as secretárias não eram fáceis de encontrar em Nashville. Ao cabo de duas semanas, Alex se tinha rendido humildemente, e desde então Andrea lhe falava a vozes através da porta do escritório.
A linha telefônica estalou de novo quando Alex agarrou o telefone. Pelo fio soou sua forma de falar tranqüila e bonachona.
—Bom dia, Nick. — Hoje madrugaste, conforme parece.
—Nem tanto. — Sempre madrugava mais que seu pai, mas a maioria das pessoas supunham era que de tal pau, tal lasca. — Vou ao Baton Rouge a jogar uma olhada em uma propriedade. Alex, você sabe onde está meu pai?
Fez-se um pequeno silencio do outro extremo da linha.
—Não, não sei. — Outra breve pausa de cautela. — Ocorre algo mau?
—Ontem à noite não veio para casa, e hoje as dez têm uma entrevista com o Bill Gene.
—Maldição — disse o Alex brandamente, mas Nick percebeu o tom de alarme em sua voz. — Deus, não acreditava que ele fora... Maldita seja!
—Alex. — O tom do Nick era duro e afiado como o aço, e cortava o silêncio. — O que está acontecendo?
—Nick, juro-te que não pensava que fosse a fazê-lo — disse Alex aflito. — Pode ser que não o tenha feito. Pode ser que ficou dormindo.
—Que não tenha feito o que?
—Mencionou-o em um par de ocasiões, mas só quando estava bêbado. Juro-te que jamais pensei que falasse a sério. Deus, como podia ser?
O plástico do auricular rangeu sob a mão de Nick.
—A que te refere?
—A deixar a sua mãe. —Alex tragou saliva de forma audível, com um som seco. — E fugir com Renée Smith.
Com muita suavidade, Nick voltou a deixar o telefone em seu lugar. Permaneceu imóvel uns segundos contemplando o aparelho. Não podia ser... Bob não podia ter feito semelhante coisa. Por que teria que fazê-lo? Por que escapar com Renée quando podia deitar-se com ela, e de fato o fazia, cada vez que lhe desejasse muito? Alex tinha que estar equivocado. Bob jamais abandonaria a seus filhos nem seu negócio... Entretanto, sentiu-se aliviado quando ele escolheu rechaçar o futebol profissional e lhe repartiu um curso acelerado sobre como dirigir tudo.
Por espaço de vários instantes de atordoamento, Nick permaneceu atordoado pela sensação de incredulidade, mas era muito realista para que dito estado lhe durasse muito. A sensação de intumescimento começou a ceder, e uma raiva intensa encheu o oco que aquele tinha deixado.
Moveu-se igual a uma serpente atacando, agarrou o telefone e o lançou pela janela, fazendo pedaços o vidro e provocando que várias pessoas acudissem imediatamente ao escritório para ver o que tinha acontecido.
Todo mundo dormiu até muito tarde exceto Bella e Scottie, e Bella saiu do barraco assim que deu o café da manhã ao menino e o levou ao arroio para que pudesse chapinhar na água e tentar apanhar peixinhos. Jamais o conseguia, mas adorava tentar. Fazia uma manhã magnífica, o sol brilhava com força através das árvores e arrancava brilhos à água. Os aromas eram frescos e penetrantes, cheios de cores boas e limpas que lavavam os acres miasmas do álcool que ainda percebia, exsudadas pelas quatro pessoas que tinha deixado dormindo depois dos efeitos da noite passada.
Esperar que Scottie não se molhasse era como esperar que o sol saísse pelo oeste. Quando chegaram ao arroio lhe tirou a camisa e as calças e deixou que se metesse na água usando só a fralda. Havia trazido outra seca para trocá-lo quando voltassem para casa. Pendurou com cuidado a roupa em uns galhos e seguidamente se meteu no arroio para chapinhar um pouco e vigiar ao Scottie. Se lhe aproximasse uma cobra, o menino não saberia que devia alarmar-se. Bella tampouco lhes tinha medo, mas certamente brincava com cautela.
Deixou-o jogar durante um par de horas e depois teve que agarrá-lo em seus braços e tirá-lo da água com grande esperneio e protestos por parte do pequeno.
—Não pode estar mais na água — lhe explicou. — Olhe, tem os dedos dos pés enrugados como uma passa.
Sentou-se no chão e lhe trocou a fralda, e a seguir o vestiu. Foi uma tarefa difícil, já que Scottie não deixava de retorcer-se e tratava de escapar de volta à água.
—Vamos procurar esquilos — lhe disse Bella. — Vê algum esquilo?
Distraído, o pequeno olhou imediatamente para cima com os olhos muito abertos pela emoção enquanto tratava de descobrir esquilos entre as árvores. Bella agarrou sua mão gordinha e o conduziu lentamente através do bosque, por um atalho que serpenteava em direção ao barraco.
Provavelmente quando tivessem retornado Renée já estivesse em casa.
Embora não era a primeira vez que sua mãe passava fora toda a noite, aquilo sempre inquietava a Bella. Tinha-o sempre em um canto de sua cabeça, mas vivia com o medo constante de que Renée partisse uma noite e não retornasse nunca. Bella sabia, com amargo realismo, que se Renée conhecesse um homem que tivesse um pouco de dinheiro e lhe prometesse coisas bonitas, largaria-os sem pensar duas vezes. Provavelmente, quão único a retinha no Prescott era Bob Carter e o que este podia lhe dar. Se alguma vez Bob a deixasse, não ficaria ali mais que o tempo necessário para fazer as malas.
Scottie conseguiu descobrir dois esquilos, uma que brincava de correr pelo ramo de uma árvore e outra que subia por um tronco, assim que se sentia feliz de ir aonde Bella o levasse. Entretanto, quando tiveram o barraco à vista, o menino advertiu que retornavam a casa e começou a proferir grunhidos de protesto e atirar para trás em um intento de soltar-se da mão de sua irmã.
—Pára Scottie — disse Bella ao mesmo tempo em que o tirava a força de entre as árvores para sair ao caminho de terra que levava até o barraco. — Agora mesmo não posso seguir brincando contigo, tenho que fazer o almoço. Mas te prometo que brincaremos com os carros quando...
Nisso, ouviu às suas costas o rugido grave do motor de um automóvel, que ia aumentando de intensidade à medida que se aproximava, e seu primeiro pensamento de alívio foi: «Mamãe está em casa».
Mas o que apareceu ao dobrar a curva não foi o reluzente carro vermelho de Renée, a não ser um Cadilac negro, adquirido para substituir ao prateado que conduzia Nick na escola secundária. Bella se deteve em seco, esquecendo-se do Scottie e de Renée, sentindo que lhe parava o coração e que logo começava a lhe golpear o peito com tal força que quase se sentiu doente. Era Nick quem vinha!
Estava tão aturdida pela alegria que quase se esqueceu de afastar o Scottie do caminho e ficar entre as ervas da sarjeta. Nick cantava seu coração. Um leve tremor lhe começou nos joelhos e lhe subiu pouco a pouco pelo corpo ao pensar que de verdade ia falar com ele de novo, embora só fora para murmurar uma saudação.
Cravou o olhar nele, absorvendo todos os detalhes, enquanto o via aproximar-se. Embora estivesse sentado atrás do volante e ela não alcançava a ver muito, pareceu-lhe que estava mais magro que quando jogava futebol e que usava o cabelo um pouco mais curto. Entretanto, seus olhos eram os mesmos, claros como o pecado e igual de tentadores. Pousaram-se nela durante uns segundos quando o Cadilac passou por diante de onde se encontravam ela e Scottie, e a saudou cortesmente com uma inclinação de cabeça.
Scottie se revolveu e atirou da mão, fascinado pelo formoso automóvel. Adorava o carro de Renée, e Bella tinha que vigiá-lo para que não se aproximasse dele, porque Renée a punha doente que o menino o manuseasse e deixasse as marcas de suas mãozinhas na pintura.
—Está bem — sussurrou Bella, ainda aturdida. —Vamos ver esse carro tão bonito.
Voltaram a entrar no caminho e seguiram o Cadilac, que já se deteve em frente do barraco. Nick se içou atrás do volante e passou uma perna por cima da porta, depois a outra, e saiu do automóvel igual a se este fosse um carrinho de bebê. Subiu os dois degraus da entrada, abriu de um puxão a porta de ralo e entrou no interior da moradia.
Não tinha batido na porta, pensou Bella. Isso estava mau. Não tinha chamado.
Apertou o passo puxando o Scottie de tal modo que suas curtas pernas tiveram que acelerar, e o menino lançou um gemido de protesto. Lembrou-se de seu coração, e o terror lhe causou uma pontada no estômago. Em seguida se deteve e se inclinou para tomar o menino nos braços.
—Sinto muito, querido, não pretendia te fazer correr.
Doía-lhe as costas pelo esforço de carregar com o pequeno, mas não fez caso e voltou a caminhar depressa. O cascalho rodava inadvertida sob seus pés descalços e cada golpe de pé levantava pequenas nuvens de pó. O peso do Scottie parecia afligi-la, lhe impedir de alcançar o barraco. O sangue lhe batia nos ouvidos, e no peito lhe estava uma sensação de pânico que quase a asfixiava.
Ouviu um rugido débil e longínquo que reconheceu como a voz de seu pai, amortecida pelo tom mais grave da do Nick. Ofegante, imprimiu maior velocidade a suas pernas e por fim chegou ao barraco. A porta de ralo chiou quando a abriu de um puxão e entrou a toda pressa na casa, só para deter-se de repente, piscando ao adaptar os olhos à penumbra. Viu-se rodeada de gritos ininteligíveis e maldições que lhe causaram a mesma sensação que se estivesse apanhada em um túnel de pesadelo.
Tragando ar a fervuras, deixou o Scottie no chão. Assustado pelos gritos, o pequeno se agarrou às pernas de sua irmã e escondeu a cara contra ela.
Quando sua vista se foi adaptando pouco a pouco e o estrondo de seus ouvidos começou a diminuir, os gritos foram cobrando sentido, e desejou que não fora assim.
Nick tinha tirado Amos da cama e estava arrastando-o à cozinha. Amos gritava e jurava, obstinado ao marco da porta em um intento de frear ao Nick. Entretanto, não tinha nenhuma possibilidade frente à força daquele jovem furioso, e o único que podia fazer era procurar não perder o equilíbrio enquanto Nick o empurrava para o centro da habitação.
—Onde está Renée? —gritou Nick, erguendo-se ameaçador sobre Amos, que reagiu encolhendo-se.
Os olhos frágeis de Amos percorreram rapidamente a estadia, como se procurasse a sua mulher.
—Não está aqui — balbuciou.
—Já vejo que não está aqui, maldito imbecil! O que quero saber é onde diabos está!
Amos se balançava para frente e para trás sobre seus pés descalços, e de repente soltou um arroto.
Levava o peito o ar e as calças ainda desabotoadas. Seu cabelo desordenado apontava em todas as direções, estava sem barbear, tinha os olhos injetados em sangue, e seu fôlego despedia um vapor de álcool. Como contraste, Nick se elevava por cima dele com seu mais de um metro oitenta de músculo magro de aço, o cabelo loiro arrepiado, a camisa de um branco imaculado e as calças feitas sob medida.
—Não tem direito a me empurrar, não me importa quem seja seu pai — se queixou Amos. Apesar de sua bravata, encolhia-se cada vez que Nick fazia um movimento.
Russ e James tinham saído rapidamente de seu dormitório, mas não fizeram nenhum gesto para apoiar a seu pai. Não era seu estilo enfrentar-se a um Nick Carter furioso, nem tampouco o era atacar a ninguém que pudesse lhes ocasionar problemas.
—Sabe onde está Renée? — perguntou Nick de novo com voz gélida.
Amos elevou um ombro.
—Deve ter saído — murmurou em tom áspero.
—Quando?
—O que quer dizer com isso de quando? Eu estava dormindo. Como diabos vou saber a que hora se foi?
—Veio para casa ontem à noite?
—Naturalmente que sim! Maldita seja o que é o que está dizendo? — chiou Amos com uma pronúncia ininteligível que dava testemunho do álcool que seguia tendo no sangue.
—Estou dizendo que essa puta que tem por esposa se foi! —gritou Nick a sua vez, com o rosto congestionado pela fúria e o pescoço em tensão.
Bella sentiu que a invadia o terror, e a vista lhe nublou outra vez.
—Não — exclamou com voz contida.
Nick a ouviu, e girou a cabeça subitamente. Escrutinou-a com seus olhos escuros brilhantes pela fúria.
—Pelo menos, você parece estar sóbria. Sabe onde está Renée? Voltou para casa ontem à noite?
Bella, aturdida, moveu a cabeça em um gesto negativo. O negro desastre se erguia ante ela, e percebeu o aroma penetrante, acre e amarelo do medo... Seu próprio medo.
Nick curvou o lábio superior mostrando seus brancos dentes em um grunhido.
—Eu já sabia que não. Fugiu com meu pai.
Bella voltou a negar com a cabeça, e então se deu conta de que não podia deixar de fazê-lo.
Não. Aquela palavra lhe reverberou por todo o cérebro. Deus, por favor, não.
—Está mentindo! — gritou Amos, dirigindo-se com passo vacilante para a desvencilhada mesa para deixar cair em uma das cadeiras. —Renée não é capaz de abandonar a mim e aos meninos. Ela me ama. Esse mulherengo do teu pai se largou com alguma que terá encontrado por aí...
Nick se lançou para frente como uma serpente em posição de ataque. Seu punho se estrelou contra a mandíbula de Amos, nódulos contra osso, e tanto Amos como a cadeira foram parar ao chão. A cadeira se desintegrou feita pedacinhos sob seu peso.
Com um lamento de terror, Scottie escondeu de novo o rosto no quadril de Bella, a qual estava muito paralisada para nem sequer lhe passar o braço pelos ombros para consolá-lo, e o pequeno rompeu a chorar.
Amos se incorporou atordoado e deu uns passos cambaleando-se para pôr a mesa no meio entre ele e Nick.
—Por que me bateste? —gemeu, esfregando-a mandíbula. — Eu não te tenho feito nada. Não é minha culpa o que tenham feito seu pai e Renée!
—O que é toda esta gritaria? —interveio a voz de Jodie, deliberadamente provocadora, a que empregava quando tentava enrolar a um homem. Bella voltou o olhar para a entrada do alpendre e seus olhos se aumentaram de horror. Jodie estava posando apoiada contra o marco da porta com sua cabeleira despenteada e jogada para trás para deixar ver seus ombros nus. Só usava uma calcinha de renda vermelha, e sustentava a regata de renda a jogo contra seu peito com dissimulada paquera de modo que apenas lhe cobrisse os seios. Olhou ao Nick com uma inocente queda de olhos, tão descaradamente falsa que Bella sentiu que lhe retorciam as vísceras.
A expressão do Nick se endureceu de asco ao olhá-la; curvou a boca e deliberadamente lhe voltou às costas.
—Quero-lhes fora daqui antes que se faça noite — disse a Amos em tom de aço. — Estão sujando nossas terras, e já estou farto de cheirar sua peste.
—Quer que partamos daqui? —grasnou Amos. — Maldito bastardo presunçoso, não pode nos jogar. Existem leis...
—Não pagam nenhum aluguel — replicou Nick com um sorriso de gelo nos lábios. — As leis de despejo não se aplicam aos intrusos. Fiquem longe daqui. —Deu meia volta e pôs-se a andar para a porta.
—Espera! —exclamou Amos. Seu olhar de pânico se movia em todas as direções, como procurando inspiração. Passou-se a língua pelos lábios e disse: — Não tenha tanta pressa. Pode... Pode ser que tenham ido dar um passeio. Já voltarão. Sim, é isso. Renée voltará, não tinha nenhum motivo para partir.
Nick soltou uma gargalhada azeda e percorreu a estadia com um olhar de desprezo, observando o pobre interior da moradia. Alguém, provavelmente a garota mais nova, fazia um esforço por mantê-la limpa, mas era como tentar conter a maré. Amos e os dois meninos, que eram cópias de seu pai, só que mais jovens, olhavam-no com expressão áspera. A filha mais velha seguia apoiada na porta, tratando de lhe mostrar tudo o que pudesse de suas tetas sem retirar de todo o escasso objeto. O menino pequeno com síndrome de Down se agarrava às pernas da filha mais jovem e chorava a voz alta. A menina permanecia de pé, como se tivesse se convertido em pedra, e o contemplava com seus enormes olhos. O cabelo longo lhe caía em desordem ao redor dos ombros, e levava os pés descalços e sujos.
Estando tão perto dele, Bella podia ler a expressão de sua cara, e sentiu uma pontada por dentro ao ver como percorria com os olhos o barraco e a seus habitantes, para por fim posá-los nela.
Estava catalogando sua vida, a sua família, a ela mesma, e estava descobrindo que não valiam nada.
—Nenhum motivo para partir? —mofou-se. — Por Deus, que eu possa ver, não tem nenhum motivo para retornar!
No silêncio que seguiu, deixou Bella a um lado e empurrou com violência a porta de ralo, a qual se chocou contra o lado do barraco e voltou a fechar-se com um golpe. O motor do Cadilac cobrou vida com um rugido, e um momento mais tarde Nick partiu. Bella ficou petrificada ali de pé, com o Scottie ainda obstinado as suas pernas e chorando. Sentia a mente intumescida. Sabia que tinha que fazer algo, mas o que? Nick havia dito que tinham que ir-se, e a enormidade daquele fato a deixou atônita. Partir? Aonde iriam? Não obtinha que sua mente ficasse a funcionar. Quão único pôde fazer foi levantar a mão, que lhe pareceu pesada como o chumbo, e acariciar o suave cabelo do Scottie dizendo:
—Está tudo bem, está tudo bem — embora soubesse que era mentira. Mamãe se tinha ido, e as coisas já nunca voltariam a estar bem.
domingo, 28 de março de 2010
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