sábado, 20 de março de 2010

Fic After The Night Cap 2

Três anos depois

—Bella — disse Renée impaciente, — faz calar de uma vez ao Scottie. Está-me pondo doente com tanto choramingação.

Bella deixou a um lado as batatas que estava cortando, limpou-se as mãos e foi até a porta de ralo, onde estava Scottie gesticulando o ralo e fazendo uns ruídos que significavam que queria sair. Nunca o deixavam sair sozinho porque não entendia o que significava «não sair do pátio», e começava a caminhar sem rumo e acabava perdendo-se. O ralo tinha um fecho no alto, que ele não podia alcançar e que sempre estava fechado para evitar que saísse por si mesmo. Bella estava ocupada com o jantar, embora fosse provável que só estivessem ela e Scottie para comer-lhe e naquele preciso momento não podia sair com ele.

Afastou-lhe as mãos do ralo e disse:

—Quer brincar com a bola, Scottie? Onde está a bola?

Scottie, facilmente distraído, pôs-se a trotar em busca de sua bola vermelha toda mordiscada, mas Bella sabia que isso não o teria ocupado muito tempo. Suspirou e voltou para as batatas.

Renée saiu lentamente de seu dormitório. Essa noite ia vestida para matar, advertiu Bella, com um apertado vestido curto de cor vermelha que deixava ao descoberto suas pernas longas e bem torneadas e que curiosamente não fazia mal contraste com seu cabelo. Renée tinha umas pernas estupendas; tinha tudo estupendo, e sabia disso. Sua abundante cabeleira ruiva formava uma nuvem e seu penetrante perfume a seguia com uma aura de um vermelho intenso.

—Que tal estou? —perguntou, girando sobre seus saltos altos enquanto colocava uns brincos de cristal barato nas orelhas.

—Preciosa — respondeu Bella, sabedora de que isso era o que Renée esperava ouvir, e não era nada menos que a verdade. Renée era tão amoral como um gato, mas também era uma mulher de surpreendente beleza, com um rosto perfeito e ligeiramente exótico.

—Bem, pois já vou. — inclinou-se para depositar um rápido beijo na cabeça de Bella.

—Se divirta mamãe.

— Assim o farei. — Deixou escapar uma risada. — Certamente que sim. —Soltou o fecho da porta de ralo e saiu do barraco exibindo suas longas pernas.

Bella se levantou para fechar de novo a porta e ficou olhando como Renée entrava em seu reluzente carro esportivo e partia. A sua mãe adorava aquele carro. Um dia chegou conduzindo-o sem dizer uma só palavra para explicar de onde o tinha tirado, embora não havia muito que duvidar a respeito. O tinha dado Bob Carter.

Ao vê-la na porta, Scottie retornou e começou a fazer de novo os ruídos que indicavam que queria sair.

—Não posso te tirar — explicou Bella com paciência infinita embora ele não entendesse grande coisa. —Tenho que fazer o jantar. O que prefere batatas fritas ou purê? —Era uma pergunta retórica, posto que o purê de batatas lhe resultasse muito mais fácil de comer. Bella lhe acariciou o cabelo escuro e voltou uma vez mais à mesa e à tigela de batatas.

Ultimamente, Scottie não demonstrava a mesma energia de sempre, e cada vez com mais freqüência seus lábios adquiriam um tintura azulado quando jogava. Estava-lhe falhando o coração, tal como haviam dito os médicos ia acontecer. Não ia haver um transplante milagroso para o Scottie, embora os Smith tivessem tido recursos para permitir-lhe Os poucos corações de crianças que havia disponíveis eram muito valiosos para desperdiçá-los em um menino pequeno que jamais saberia vestir-se sozinho, nem ler, nem dirigir mais que umas quantas palavras balbuciadas por mais tempo que vivesse. «Gravemente atrasado» era a categoria que lhe tinham atribuído. Embora a Bella lhe formasse um nó no peito quando pensava em que Scottie fosse a morrer, não sentia amargura por saber que não ia se fazer nada pela frágil saúde do menino. Um coração novo não o ajudaria, certamente não de forma que importasse. Os médicos não esperavam que tivesse vivido tanto, e ela cuidaria dele durante o tempo que ficasse.

Durante uma temporada se perguntou se não seria filho do Bob Carter, e se sentiu furiosa por ele, de que não o tivessem levado a viver naquela grande casa branca, onde teria os melhores cuidados e seria feliz durante os poucos anos que ficassem. Como era atrasado, pensou, Bob estava contente de mantê-lo fora da vista.

O certo era que Scottie poderia ser perfeitamente filho de Amos, e era impossível sabê-lo. Não se parecia com nenhum dos dois homens, simplesmente se parecia com ele mesmo. Já tinha seis anos, e era um menino aprazível que se contentava com as coisas menores e cuja segurança radicava em sua irmã de quatorze anos. Bella cuidava dele desde o dia em que Renée o trouxe do hospital para casa, e o protegeu dos acessos de ira de seu pai quando estava bêbado e das desumanas brincadeiras do Russ e James. Renée e Jodie o ignoravam a maior parte do tempo, o qual ao Scottie parecia bem.

Jodie tinha pedido a Bella que saísse com ela aquela noite par formar dois casais, e se encolheu de ombros quando esta se negou a fazê-lo porque alguém tinha que cuidar do Scottie. De todos os modos, Bella não teria saído com Jodie; sua idéia de passá-lo bem era muito distinta da de sua irmã. Jodie pensava que divertir-se consistia em roubar um pouco de bebida legal, já que só tinha dezesseis anos, embebedar-se e deitar-se com o menino ou grupo de meninos que estivesse por aí essa noite. Todo seu ser se estremeceu de repulsão ao pensar nisso. “Tinha visto Jodie entrar em casa cheirando a cerveja e a sexo, com a roupa destroçada e cheia de manchas, rindo bobamente pelo muito que se divertiu». Ao que parecia nunca a incomodava que esses mesmos meninos não lhe dirigissem a palavra se a encontravam em público. Aquilo sim incomodava a Bella. Ardia-lhe o sangue de humilhação ao ver o desprezo nos olhos das pessoas cada vez que olhavam a ela, ou qualquer um de sua família. Essa gentinha dos Smith, assim os chamavam. Bêbados e vadias, todos eles.

Mas eu não sou assim! Aquele silencioso grito surgia no interior de Bella algumas vezes, mas sempre o continha. Por que as pessoas não viam nada mais atrás daquele sobrenome? Ela não se pintava nem usava roupa muito curta ou ajustada como faziam Renée e Jodie; ela não bebia, nem andava por tugúrios tratando de se unir com algo que usasse calças. Vestia roupa velha e mal confeccionada, mas sempre ia limpa. Jamais se perdia um dia de aula, se podia evitá-lo, e tirava boas notas. Ansiava respeitabilidade, queria poder entrar em uma loja sem que as atendentes a observassem como falcões só porque fazia parte daquela gentinha dos Smith e todo mundo sabia que eram capazes de deixar a qualquer um em pelados. Não queria que as pessoas fizessem comentários as suas costas cada vez que a viam.

A isso não ajudava o fato de que fisicamente se parecesse mais a Renée que Jodie.

Bella possuía a mesma cabeleira abundante e ruiva, vibrante como uma chama, a mesma pele de porcelana, as mesmas maçãs do rosto e os mesmos olhos, verdes e exóticos. Seu rosto não Luzia tanta perfeição de proporções como o de Renée, mas sim era mais magro, de mandíbula mais quadrada, e com uma boca igual de generosa, mas não tão cheia. Renée era voluptuosa; Bella era mais alta e mais esbelta, seu corpo tinha uma constituição mais delicada. Por fim lhe tinham crescido os seios, firmes e insinuantes, mas Jodie à mesma idade usava já um sutiã duas vezes maior que o seu.

Como se parecia com Renée, pelo visto as pessoas esperavam que atuasse como ela também, e, entretanto nunca olhavam mais à frente. Julgavam-na pela mesma rasoura que ao resto da família.

—Mas algum dia partirei, Scottie — disse brandamente. — Já o verá.

Ele não reagiu àquelas palavras, mas sim se limitou a acariciar o ralo.

Como sempre, cada vez que precisava animar-se um pouco, pensava no Nick. Seus dolorosos sentimentos por ele não tinham diminuído nos três anos que tinham transcorrido desde a vez em que o viu fazendo amor com Lindsey Partain, senão que tinham se intensificado conforme foi amadurecendo. A assombrosa alegria com que o contemplava quando tinha onze anos tinha crescido e mudado, igual a lhe tinha ocorrido a ela mesma. Agora, quando pensava nele, mesclavam-se as sensações físicas com as românticas em vivo contraste, e, dado o modo em que se criaram, os detalhes eram muito mais nítidos e mais explícitos do que caberia esperar no caso de outras meninas de quatorze anos.

Seus sonhos não tomavam a cor só do que a rodeava; o dia em que viu o Nick com Lindsey Partain — atualmente Lindsey Mouton, tinha proporcionado uma grande quantidade de conhecimentos sobre o corpo do rapaz. Na realidade não lhe tinha visto as genitálias, porque no princípio estava voltado de costas a ela e quando se situou em cima as pernas dos dois amantes lhe tinham embaraçado a visão. Mas isso não importava muito, porque sabia como eram. Não só levava toda a vida cuidando do Scottie, mas também de seu pai, e também Russ e James, quando estavam bêbados, tinham tantas probabilidades de não ser capazes de desabotoar as calças e fazer xixi, diante dos degraus da entrada como de usar o banheiro.

Mas Bella conhecia detalhes suficientes do corpo de Nick para excitar seus sonhos. Sabia quão musculosas eram aquelas longas pernas, e que nelas lhe crescia um pêlo loiro. Sabia que suas nádegas eram medianas, redondas e claras, e que tinha dois preciosos lunares gêmeos justo em cima.

Sabia que seus ombros eram largos e poderosos, que suas costas eram largas e com o oco da coluna vertebral profundamente marcado entre as grossas capas de músculos. Em seu largo peito tinha uma ligeira capa de pêlo loiro, bem fino quase imperceptível.

Sabia que fazia amor em francês, com voz profunda, em tom suave e sedutor.

Tinha seguido sua carreira na LSU com secreto orgulho. Acabava de graduar-se com excelentes qualificações em economia e administração de empresas, com o olho posto em fazer-se acusação algum dia das propriedades dos Carters. Embora fosse muito bom em futebol, não tinha querido fazer carreira como profissional, e em vez disso tinha retornado a sua casa para começar a ajudar ao Bob.

Agora poderia vê-lo ocasionalmente durante todo o ano, em lugar de só durante o verão e as férias.

Por desgraça, Leslie também tinha voltado para casa definitivamente e estava tão rancorosa como sempre. O resto do mundo era simplesmente depreciativo, mas Leslie odiava ativamente a toda pessoa que levasse o sobrenome Smith. Entretanto, Bella não podia censurá-la, e às vezes inclusive a compreendia. Ninguém havia dito nunca que Bob Carter não fora bom pai; amava a seus dois filhos e eles o amavam. Como se sentiria Leslie ao ouvir às pessoas falar do caso que tinha Bob com o Renée desde fazia tanto tempo, sabendo que ele era abertamente infiel a sua mãe?

Quando era menor, Bella tinha fantasiado com a idéia de que Bob também fosse pai dela; Amos, não tinha nenhum papel naquela fantasia. Bob era alto, loiro e excitante, seu rosto magro se parecia tanto ao do Nick que, fosse como fosse, não podia odiá-lo. Sempre tinha sido amável com ela, com todos os filhos de Renée, mas às vezes fazia um esforço especial por falar com Bella e em uma ou duas ocasiões lhe tinha comprado algum pequeno detalhe. Provavelmente era porque se parecia com Renée, pensou Bella. Se Bob fosse seu pai, Nick seria seu irmão e ela poderia idolatrá-lo de perto, viver na mesma casa com ele. Aquelas fantasias sempre a faziam sentir-se culpada por Amos, e então procurava estar do mais amável com ele para compensá-lo. Entretanto, ultimamente se alegrava muitíssimo de que Bob não fosse seu pai, porque já não queria ser irmã do Nick.

Queria casar-se com ele.

A mais íntima de suas fantasias era tão surpreendente que às vezes a deixava atônita o fato de que se atrevesse sequer a sonhar tão alto. Um Carter casado com uma Smith? Uma Smith pondo o pé naquela mansão centenária? Todos os antepassados dos Carters se levantariam de suas tumbas para expulsar à intrusa. Os paroquianos ficariam horrorizados.

Mas continuava sonhando. Sonhava vestindo-se de branco, percorrendo o longo corredor da igreja enquanto Nick a esperava no altar e se voltava para olhá-la com aqueles olhos escuros de pesadas pálpebras e expressão intensa e desejosa, só para ela. Sonhava que a tomava em seus braços e cruzava com ela a soleira da casa — não a casa dos Carters, não podia imaginar tal coisa, a não ser outra que fora só deles dois, talvez uma cabana onde passar a lua de mel — e a levava até uma grande cama que os estava aguardando. Imaginava estendida debaixo dele, rodeando-o com suas pernas igual tinha visto fazer a Lindsey, imaginava movendo-se, ouvia sua voz sedutora lhe sussurrar ao ouvido palavras de amor em francês. Sabia o que faziam os homens e mulheres quando estavam juntos, sabia onde poria ele sua coisa, embora não pudesse imaginar-se que sensação lhe produziria.

Jodie dizia que era uma sensação maravilhosa, a melhor do mundo...

Scottie lançou um penetrante uivo que tirou Bella de seus pensamentos. Soltou a batata que estava descascando e ficou de pé de repente, porque Scottie não chorava a menos que se tivesse feito mal. Estava de pé, imóvel, junto ao ralo, sustentando o dedo. Bella o agarrou nos braços e o levou até a mesa para sentar-se com ele nos joelhos e lhe examinar a mão. Tinha um arranhão pequeno, mas profundo na ponta do dedo indicador; provavelmente tinha passado a mão por um buraco do ralo e se cravou o arame quebrado. Da minúscula ferida tinha brotado uma única gota de sangue.

—Vamos, vamos, não passa nada — o consolou abraçando-o e lhe secando as lágrimas. — Te porei um curativo e se curará. Você gosta dos curativos.

Assim era. Cada vez que Scottie se fazia um arranhão que necessitava uma venda, Bella terminava lhe pondo um curativo por toda parte nos braços e nas pernas, porque o menino não deixava de insistir até gastar todas as que houvesse na caixa. Bella tinha aprendido a tirar a maioria dos curativos e esconder, de modo que só ficassem dois ou três que Scottie pudesse ver.

Lavou-lhe o dedo e tirou a caixa do armário superior, onde a guardava para mantê-la fora de seu alcance. A carinha redonda do menino resplandecia de prazer enquanto lhe oferecia o dedo. Com grande teatralidade, Bella aplicou o curativo à ferida. Scottie se inclinou para frente e olhou o interior da caixa aberta, e a seguir soltou um grunhido e estendeu a outra mão.

—Também te tem feito mal nesta? Pobre mãozinha! — Beijou-lhe a mão pequena e gordinha e lhe pôs um curativo no dorso.

O menino se inclinou e observou de novo o interior da caixa, e mostrou um largo sorriso ao mesmo tempo em que levantava a perna direita.

—Céu santo! Tem-te feito mal por toda parte! —exclamou Bella, e lhe pôs outro curativo no joelho.

Scottie examinou a caixa outra vez, mas já estava vazia. Satisfeito, retornou trotando a porta e Bella voltou a ocupar-se do jantar.

Com os longos dias do verão, às oito e meia era só o entardecer, mas para as oito daquela tarde Scottie estava já cansado e dando cabeçadas. Bella o banhou e o deitou, e lhe acariciou um momento o cabelo com o coração encolhido pela pena. Era um menino tão doce, alheio aos problemas de saúde que lhe impediriam de chegar a fazer-se adulto.

Às nove e meia ouviu que chegava Amos em sua velha caminhonete, que estralava e cuspia pelo escapamento. Foi soltar o fecho do ralo para deixá-lo entrar. O aroma de uísque penetrou com ele, um vapor purulento de cor amarela esverdeada.

Tropeçou ao chegar à soleira e se endireitou com esforço.

—Onde está sua mãe? —grasnou naquele tom mesquinho e desagradável que empregava sempre que bebia, o qual acontecia à maior parte do tempo.

—Saiu faz um par de horas.

Avançou dando tombos para a mesa. O desnível do chão fazia que seus passos fossem muito mais arriscados.

—Maldita vadia — murmurou. — Nunca está aqui. Anda sempre meneando o traseiro diante desse namorado rico que tem. Nunca está aqui para me fazer o jantar. Assim, como vai comer um homem?

—Rugiu de repente, golpeando a mesa com o punho.

—O jantar já está pronto, papai — disse Bella em voz baixa, com a esperança de que o rugido não despertasse ao Scottie. — Vou servir-te um prato.

—Não quero comer nada — replicou ele, tal como Bella esperava. Quando bebia, nunca queria comer, só beber mais.

—Há algo de beber nesta maldita casa? —incorporou-se se cambaleando e começou a abrir as portas dos armários e às fechar violentamente quando não encontrava o que estava procurando.

Bella se moveu depressa.

—Há uma garrafa no quarto dos meninos. Vou pegar.

Não queria que Amos entrasse ali a tropeções, amaldiçoando e provavelmente vomitando, e despertasse ao Scottie. Entrou como um raio na pequena habitação às escuras e procurou às cegas debaixo do colchão do James até que sua mão topou com um vidro frio. Tirou a garrafa e retornou correndo à cozinha. Só estava cheia até menos da metade, mas algo serviria para aplacar a seu pai. Tirou a tampa e estendeu a garrafa a Amos.

—Aqui está, papai.

—Boa garota — repôs-se, enquanto se levava a garrafa à boca com expressão satisfeita. —É uma boa garota, Bella, não uma puta como sua mãe e sua irmã.

—Não fale assim delas — protestou Bella, incapaz de escutar. Uma coisa era sabê-lo, e outra muito distinta falar disso. Como se ele pudesse jogar a primeira pedra.

—Falo como me dá a maldita vontade! — estalou Amos. — Não me replique, menina, ou te dou uma surra.

—Não te estava replicando, papai. — Manteve o tom acalmado, mas por prudência se situou fora de seu alcance. Se não podia alcançá-la, não poderia golpeá-la. Era propenso a jogar alguma coisa, mas ela era rápida e suas projéteis raras vezes lhe acertavam.

—Que filhos me deu essa — disse com desprezo. — Russ e James são os únicos aos que posso suportar. Jodie é uma puta como sua mãe, você é uma listinha afetada, e o último é um maldito idiota.

Nick manteve a cabeça girada para que seu pai não pudesse ver as lágrimas que lhe arrasavam os olhos. Sentou-se no puído e fundo sofá e começou a dobrar a roupa que tinha lavado aquele dia.

Para não deixar Amos ver que a tinha ferido. Se alguma vez cheirava o sangue, passava a matar, e quanto mais bêbado estava, mais cruel se voltava. O melhor era não lhe fazer caso. Ao igual a todos os bêbados, distraía-se facilmente, e Bella se imaginou que de todos os modos logo ficaria dormindo.

Não sabia por que o fazia dano aquilo. Fazia muito tempo que tinha deixado de sentir nada por Amos, nem sequer medo. Certamente, ali não havia nada que amar, o homem que tinha sido fazia muito que tinha ficado destruído por incontáveis garrafas de uísque. Se alguma vez tinha mostrado alguma esperança, esta já tinha desaparecido para quando nasceu Bella, mas por alguma razão ela pensava que sempre tinha sido muito parecido como era agora. Simplesmente, era dessa classe de pessoas que sempre culpavam os outros de seus problemas em lugar de fazer algo por corrigi-los.

Em ocasiões, quando estava sóbrio, Bella acreditava compreender por que Renée se sentiu atraída por ele em outro tempo. Amos tinha uma estatura um pouco superior à média e um corpo fibroso que nunca tinha criado graxa. Conservava o cabelo escuro, embora já clareando um pouco nas têmporas, e inclusive se poderia dizer que era um homem arrumado... Quando não estava bêbado.

Bêbado, como estava agora, sem se barbear e com o cabelo revolto e pendurando em mechas sujas, os olhos avermelhados e turvados pelo álcool e o rosto congestionado, não havia nele nada de atrativo. Levava a roupa suja e cheia de manchas de óleo, e cheirava que dava asco. A julgar pela acidez de seu fôlego, tinha vomitado pelo menos uma vez, e as manchas que levava na parte dianteira das calças indicavam que não tinha tido o devido cuidado de urinar.

Terminou-se a garrafa em silêncio e depois arrotou sonoramente.

—Tenho que ir ao banheiro — anunciou, e ato seguido se incorporou com pé inseguro e se dirigiu à porta de entrada da casa.

Os movimentos de Bella eram medidos, suas mãos não tremeram em nenhum momento enquanto escutava o barulho de urina repicar contra os degraus da entrada, para que todos que viesse a casa essa noite o pisasse ao entrar. O primeiro que faria pela manhã seria limpar o chão.

Amos retornou ao interior da casa cambaleando-se. Não se tinha subido o zíper das calças, mas ao menos não tinha deixado à vista seu sexo.

—Vou à cama — disse, dirigindo-se à habitação de trás. Bella observou como dava um tropeção e se endireitava de novo segurando-se com a mão ao marco da porta. Não se despiu, mas sim desabou sobre a cama tal como estava. Quando Renée chegasse a casa e se encontrasse com Amos atravessado na cama com aquela roupa suja, armaria uma bronca e despertaria todo mundo.

Em questão de minutos, os profundos roncos de Amos levantavam eco por todo o barraco.

Bella se levantou imediatamente e foi ao alpendre que tinham construído na parte traseira, o qual compartilhava com a Jodie. Só Amos e Renée tinham uma cama como Deus manda; o resto dormia em armados improvisados de cama. Acendeu a luz, uma lâmpada nua que despediu uma luz ferina, e ficou rapidamente a camisola. Continuando, tirou seu livro de debaixo do colchão. Agora que Scottie estava deitado e Amos dormindo na bebedeira, talvez dispusesse de um par de horas de tranqüilidade antes que chegasse alguém mais. Amos era sempre o primeiro a chegar a casa, mas também era o primeiro que se levantava.

Tinha aprendido a não vacilar quando lhe apresentava uma oportunidade para desfrutar, a não ser a aproveitá-la. Em sua vida havia muito poucas para deixá-las passar sem as saborear. Adorava os livros e lia tudo que caísse em suas mãos. Havia algo mágico na maneira em que podiam alinhavar as palavras para criar todo um mundo novo. Enquanto lia podia abandonar aquele barraco e viajar a mundos cheios de emoção, beleza e amor. Quando lia, em sua mente era outra pessoa, alguém que valia a pena, em lugar de um membro daquela gentinha dos Smith.

Não obstante, tinha aprendido a não ler diante de seu pai nem dos meninos porque, no mínimo, burlavam-se dela. Qualquer um deles, com seu estilo pior, o mais provável era que lhe arrancasse o livro das mãos e o atirasse ao fogo e que rissem as gargalhadas como se os frenéticos esforços de Bella por salvá-lo fossem o mais gracioso que tivesse visto jamais. Renée grunhia pelo fato de que ela desperdiçasse o tempo lendo em vez de fazer os trabalhos da casa, mas não o fazia nada ao livro em si. Jodie ria dela às vezes, mas de forma despreocupada e impaciente. Não entendia por que Bella preferia enterrar o nariz em um livro em lugar de sair e divertir-se um pouco.

Aqueles preciosos momentos de solidão, nos que podia ler em paz, eram para Bella o melhor do dia, a não ser que tivesse a sorte de ver o Nick. Às vezes pensava que se não pudesse ler, nem sequer durante uns minutos, voltaria-se louca e começaria a gritar, e já não poderia parar. Mas não importava o que fizesse seu pai, não importava o que ouvisse dizer a respeito de sua família, não importava o que tivessem estado fazendo Russ e James ou quão débil parecesse Scottie, enquanto pudesse abrir um livro para perder-se entre suas páginas.

Aquela noite dispunha de mais de uns minutos para ler, para perder-se nas páginas da Rebecca. Acomodou-se em sua cama e tirou a vela que guardava debaixo dela. Acendeu-a, situou-a convenientemente, em equilíbrio sobre uma caixa de madeira que havia à direita da cama, e se colocou de forma que as costas ficassem apoiadas contra a parede. A luz da vela, embora pequena, bastava para rebater o forte brilho da lâmpada e lhe permitia ler sem forçar muito a vista. Um daqueles dias prometeu-se a si mesma, compraria um abajur. Já imaginava um autêntico abajur para ler que projetasse uma luz brilhante e suave. E também teria um desses travesseiros em forma de cunha para recostar-se.

Um daqueles dias.

Era quase meia-noite quando se rendeu e deixou de lutar contra as pálpebras que lhe fechavam.

Odiava deixar de ler, pois não queria perder nada daquele tempo que tinha para ela mesma, mas tinha tanto sono que já não se inteirava do que estava lendo, e desperdiçar a leitura lhe desejava muito era pior que desperdiçar o tempo. Assim, com um suspiro, levantou-se, voltou a guardar o livro em seu esconderijo e depois apagou a luz. Meteu-se ente as gastos lençóis fazendo chiar o velho colchão sob seu peso e soprou a chama da vela.

Perversamente, naquela súbita escuridão, o sono não vinha.

Deu voltas no magro colchão e se deixou levar por uma fantasia, adormecida pela metade, em que voltou a viver o tenso e misterioso romance do livro que estava lendo. Soube de maneira instantânea o momento em que Russ e James chegaram em casa, perto da uma da manhã. Entraram cambaleando-se, sem o menor esforço por não fazer ruído, rindo a gargalhadas por algo que tinham feito aquela noite seus amigos de bar. Os dois eram ainda menores de idade, mas uma coisinha tão insignificante como uma lei nunca ficava por meio quando um Smith queria fazer algo. Os meninos não podiam ir a motéis de estrada, mas havia outros muitos lugares nos que podiam embebedar-se, e os conheciam todos. Às vezes roubavam a bebida, outras vezes pagavam a alguém para que a comprasse em cujo caso roubavam o dinheiro. Nenhum dos dois tinha trabalho, nem de meia jornada nem de outra classe, porque ninguém queria contratá-los. De todos era sabido que os meninos dos Smith eram capazes de roubar a qualquer um.

— O tolo de costas — ria James. — Buuum!

Aquilo foi suficiente para que Russ estalasse em gargalhadas e alaridos. Dos fragmentos incoerentes que Bella acertou ouvir, evidentemente «o tolo de costas», fosse quem fosse, assustou-se por algo que tinha provocado o ruído de uma forte explosão. Pelo visto, aos meninos resultava muito gracioso, mas provavelmente pela manhã já não se lembrariam disso.

Despertaram ao Scottie, e Bella o ouviu gemer, mas não chorou, de modo que não se levantou da cama. Não lhe teria gostado de entrar no quarto dos meninos de camisola — de fato, haveria-se morta de medo, — mas o teria feito se tivessem assustado ao Scottie e o tivessem feito chorar.

Mas James disse:

—Te cale e volta a dormir — e Scottie guardou silêncio outra vez. Ao cabo de uns minutos estavam todos dormindo e um coro de roncos subia e baixava na escuridão.

Meia hora depois chegou Jodie. Não fez ruído, ou pelo menos tentou não fazê-lo, andando nas pontas dos pés com os sapatos na mão. Acompanhava-a um vapor a cerveja e a sexo, tudo misturado em um redemoinho amarelo, vermelho e pardo. Não se incomodou em despir-se, mas sim se deixou cair em sua cama e exalou um profundo suspiro, quase como um ronrono.

—Está acordada, Bella? —perguntou ao cabo de uns instantes com voz turva.

—Sim.

—Já me imaginava. Deveria ter vindo comigo. Diverti-me horrores. — Aquela última frase tinha um deixe de sensualidade. — Não sabe o que te está perdendo, irmãzinha.

—Então não estou perdendo isso, não? —sussurrou Bella, e Jodie soltou uma risada.

Bella se adormeceu ligeiramente à espera de ouvir o carro do Renée para certificar-se de que todos estavam a salvo em casa. Duas vezes despertou com um sobressalto, perguntando-se se Renée teria conseguido entrar sem despertá-la, e se levantou para olhar pela janela a ver se estava ali seu carro. Mas não estava.

Aquela noite Renée não voltou para casa.

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